João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Para Susan Neiman, esquerda woke adotou as ideias da direita

Além disso, movimento abandonou as ideias tradicionais da esquerda

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Há certas palavras do léxico político da esquerda que desapareceram da paisagem. Povo é uma delas. Classe é outra. Trabalhador idem. E até pobreza e miséria. Onde estão esses conceitos?

Não na esquerda woke, mais interessada nos dramas da identidade, do racismo estrutural e das questões de gênero.

Ironicamente, o povo só existe na retórica da direita populista. Não admira que muitos dos antigos eleitores de esquerda estejam a migrar para essas águas, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa.

Talvez seja por isso que Susan Neiman, uma ilustre filósofa de esquerda, se viu na necessidade de escrever o ensaio "Left Is Not Woke" (Polity, 160 págs).

O título é enganador, aviso já. Susan Neiman concede que a esquerda woke participa das mesmas emoções da esquerda tradicional. A empatia com os marginalizados, a indignação contra os opressores, a vontade de corrigir erros históricos –tudo isso está lá.

O problema é que a esquerda woke, para atingir esses objetivos, comete dois pecados capitais. O primeiro é abandonar as ideias tradicionais da esquerda. O segundo é adotar as ideias tradicionais da direita. Essas duas traições estão profundamente interligadas.

O primeiro grande abandono está na recusa do universalismo e na defesa do tribalismo. Quando olhamos para os últimos 250 anos, foi a direita que marchou contra o universalismo, defendendo uma concepção moral e política particularista.

Como dizia Joseph de Maistre, esse inestimável reacionário, existem franceses, italianos, russos e até, graças a Montesquieu, persas. Mas a ideia de que existe "o homem", figura abstrata, não passa de um absurdo.


Ilustração Silhueta de trabalhador rural com enxada nas mãos tem frases de protesto por reforma agrária, taxação de riquezas, direito ao trabalho e vivas ao povo projetadas em seu corpo."
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 10.abr.23

Uma das grandes conquistas da esquerda foi defender uma concepção de humanidade que se situava acima da tradição ou do privilégio. Se todos somos seres humanos, isso significa que todos participamos em pé de igualdade da teia de direitos e deveres que a lei determina.

A esquerda woke quebra essa pretensão universalista, tribalizando a discussão e a luta políticas.

Mas o abandono continua com a substituição de justiça por poder. Aqui, a influência de Michel Foucault é imensa: se tudo é definido pelas relações de poder que existem na sociedade, falar de justiça não passa de retórica vã e até perversa, destinada a perpetuar a opressão.

A política é uma forma de guerra. E, como acontece na guerra, a distinção fundamental é entre "amigos" e "inimigos". Essa ideia, popularizada por Carl Schmitt, o famoso jurista do Terceiro Reich, reduz a política a uma luta mortal pelo poder, desprezando-se pelo caminho o papel da razão na busca de soluções exequíveis e de reformas necessárias para os problemas sociais.

A esquerda woke foi capturada por esse estranho casamento entre Foucault e Schmitt, abandonando o racionalismo que a define desde o Iluminismo por uma forma de niilismo que era coutada exclusiva da direita mais radical.

Por último, a esquerda woke abandonou também a própria ideia de progresso. Isso se explica por um pessimismo antropológico que, uma vez mais, tem a marca da direita.

Se a história é tão só uma lista de barbaridades que continua até o presente, a esquerda woke parece cega para os progressos reais, tangíveis, que a esquerda não woke, apesar de tudo, conseguiu.

Exemplo: por mais problemático que seja o racismo nas sociedades contemporâneas, ele era bem pior cem anos atrás, ou 200 anos atrás, ou 300 anos atrás.

A incapacidade de pensar de forma gradativa, quer em relação ao passado, quer em relação ao futuro, encerra a esquerda woke num pesadelo permanente do qual é impossível sair.

Fato: discordo de vários dos argumentos avançados por Susan Neiman. Para começar, creio que a apresentação que ela faz da direita é caricatural e terrivelmente a-histórica.

Por cada reacionário que ela apresenta (Maistre, Schmitt etc.) contra as ideias de universalismo, justiça ou progresso, eu posso contrapor vários pensadores de direita (Disraeli, Churchill etc.) que não teriam problemas em defender cada um desses princípios.

Além do mais, na ambição de apresentar uma única esquerda não woke, Neiman parece ignorar as várias esquerdas que, herdeiras do Iluminismo, acabaram por ter diferentes destinos –do marxismo-leninismo à social-democracia. Nem todas são recomendáveis.

Seja como for, o seu ensaio é um contributo notável para que a esquerda contemporânea faça um pouco de autoanálise e evite as más companhias.

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