João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Na política, o príncipe nem sempre está alinhado com as virtudes dos sábios

'Oppenheimer', o melhor filme de Christopher Nolan, combina monumentalidade e destreza para mostrar lugar dos poderosos

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Que faria eu se estivesse no lugar do príncipe de Nicolau Maquiavel? É a pergunta mais perturbadora em política. Podemos ter nossas teorias sobre o poder e o mundo. As ideologias, essa espécie de fast food do pensamento, dão uma ajuda.

Mas a questão que muitas vezes importa, como lembrava Raymond Aron, é saber o que faríamos nós no lugar do príncipe. Que faria eu, sentado naquela cadeira, confrontado com aquelas opções, sabendo que meus atos trariam certas consequências?

É o momento em que a teoria acaba e a realidade começa.

Vejamos a bomba atômica. Qualquer humanista, confrontado com o seu potencial de destruição, recua de horror. E dirá: jamais, em tempo algum, permitiria que uma bomba dessas fosse desenvolvida durante o meu governo.

Mas depois alguém informa que os nazistas estão procurando a bomba desde 1939 e a natureza da pergunta se altera. Seus gostos ou desgostos sobre o assunto colapsam.

A questão, agora, é saber quem vai chegar lá primeiro: você ou as forças nazistas? É bom que seja você, humanista.

O mesmo acontece sobre o ato de jogar a bomba atômica no Japão. É um pensamento aterrador e, além do mais, historicamente controverso.

A versão cinematográfica de Robert Oppenheimer, criador da bomba-atômica, se encontra em primeiro plano, de terno e chapéu, com uma forte luz incidindo sobre seu corpo, criando um lado de sombra vermelha. Voando acima, a silhueta vermelha do abutre que devora o fígado de Prometeu circunda o personagem como um agouro do apocalipse.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 24 de julho de 2023 - Angelo Abu

Talvez o Japão estivesse perto da derrota, sem ser necessária essa barbárie. Talvez o uso da bomba fosse apenas uma demonstração dos americanos para assustar os soviéticos.

Ou talvez não fosse.

Talvez o Japão não estivesse a caminho da rendição. Talvez continuasse a lutar com o grau de ferocidade revelado em Okinawa e Iwo Jima. Talvez a bomba, como afirmam vários historiadores, tenha na verdade salvo muitas mais vidas do que aquelas que destruiu.

Em 1945, estar no lugar do príncipe não era saber se jogar uma bomba era moralmente certo ou errado. A questão era outra: terminar a guerra imediatamente ou continuar lutando durante meses ou anos?

Não tenho resposta para nenhuma das perguntas. Razão pela qual nunca tive a tentação de me sentar no lugar do príncipe.

Mas um dos momentos mais notáveis do filme de Christopher Nolan, "Oppenheimer", acontece precisamente quando o cientista se encontra com o presidente Harry S. Truman.

J. Robert Oppenheimer é o homem do momento: pai da bomba atômica, capa da Time, o mago de Los Alamos. Mas Oppenheimer teme a sua criação e, como diz a Truman, sente que tem "sangue nas mãos".

Truman, com uma brutalidade cínica, oferece-lhe um lenço. E depois afirma que, no Japão, ninguém quer saber quem foi o cientista que criou a bomba. Apenas quem a jogou.

E foi ele, Truman, a tomar essa decisão. É ele, Truman, que ocupa o lugar do príncipe.

E será ele, contra a opinião cada vez mais incômoda de Oppenheimer, a subir a parada da corrida nuclear. Como? Buscando bombas cada vez mais poderosas, talvez por entender que a União Soviética não ficaria parada na arquibancada.

Nas críticas ao filme, muito se falou sobre o mito de Prometeu. O livro em que o diretor se inspirou —"Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano", de Kai Bird e Martin J. Sherwin— ostenta a comparação no título.

Entendo a tentação: Prometeu roubou o fogo de Zeus para o oferecer aos homens; pelo gesto, sofreu agonias mil. "Oppenheimer" seria, nessa leitura, uma atualização do mito.

Mas há um segundo significado nesse mito —e esse significado está no nome, Prometeu, "aquele que antevê", aquele que sabe antes do tempo.

Essa é a grande tragédia de Oppenheimer: ver demais. Isso está presente no primeiro plano do filme: quando o jovem físico olha para a água da chuva sabendo que, à luz da nova física, a realidade material não é o que aparenta.

Essa inquietude continua nas noites de insônia, quando é arrebatado por visões de destruição que são um prenúncio do Projeto Manhattan.

E atinge o auge quando, após a criação, Oppenheimer tenta moralizar os líderes para o controle e a cooperação internacionais em matéria atômica.

É punido por isso. Sempre foi: Platão pensava que podia civilizar o tirano de Siracusa. Thomas More tentou o mesmo com Henrique 8º. Deu no que deu.

"Oppenheimer" é o melhor filme de Christopher Nolan porque combina a espantosa monumentalidade formal —a cena da detonação da bomba é uma pequena obra-prima— com a destreza narrativa que nunca se sobrepõem ao essencial: em política, o príncipe nem sempre está alinhado com aqueles que não estão sentados no seu lugar.

É o momento em que as antigas virtudes dos sábios se tornam insuportáveis pecados.

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