Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Doação de coleção de art déco ao MAC é boa notícia em país sob ameaça

Museu vai receber obras de Antonio e Regina Gomide e John Graz, doadas por Fulvia e Adolpho Leirner

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É impossível não falar do Sete de Setembro, o pior da história.

Bolsonaro agitou, mandou comprar armas, mobilizou seu gado da maneira mais inconsequente. Quis pôr na rua gente brutal e armada que, ainda mais em grupo, é capaz de qualquer coisa.

Nada dos desfiles bem-comportados das escolas da minha infância. Nada de ordem. Bolsonaro reina pela desordem.

Desordeiro e regressivo, o candidato a golpe é mestre nos factoides. Tudo serve para esconder sua incapacidade em governar.

Há pouco, a infame história do voto impresso, que lhe serviu para tirar o foco da CPI. Agora, essa agitação antipatriótica para esconder tudo o que de horrível está acontecendo: economia à matroca, saúde desprezada, queimadas, a indignidade humana do marco temporal indígena e que sei mais?

Todos os desmandos de um desgoverno absoluto. E tentativa de recuperar seu desprestígio, sua queda nas pesquisas, os apoios que lhe são retirados. Até o pato da Fiesp percebeu que sua lagoa secou.

Bolsonaro é covarde. Entre outras coisas, tem medo de ser pego no pulo das rachadinhas. Essa palavra, no diminutivo, parece meio que brincadeira ou piada. Não é. Ela recobre a corrupção mais imediata dos gângsters que estão na política. Drena muito dinheiro. É o dízimo do mafioso, roubado do dinheiro público. Os indícios de corrupção surgem, cada vez mais, muito claros, nos imóveis milionários de um ou outro membro da sua família.

É difícil acreditar no pior, em uma guerra civil ou em um golpe. Cão que morde não ladra. No entanto, Bolsonaro não para com suas provocações, cortinas de fumaça que animam os ineptos. E elas podem, sim, levar ao descontrole.

Boa e grande notícia, nestes tempos difíceis, que começa com duas pessoas, um casal. Têm direito a toda nossa admiração: Fulvia e Adolpho Leirner.

Desde os anos 1960, colecionaram obras de artes aplicadas: móveis, tapetes, vasos, esculturas, luminárias, louças, os mais sofisticados daquilo que pode ser chamado o art déco brasileiro. Algumas peças dessa coleção foram expostas no Museu de Arte Moderna, na mostra reunindo obras de um trio de artistas, que trabalhavam juntos: Antonio e Regina Gomide, irmãos, e John Graz, casado com Regina.

Fruto de generosidade, conhecimento, sensibilidade, em reunião muito rara no ambiente brasileiro, a grande coleção de artes aplicadas feita por Fulvia e Adolpho Leirner foi doada para o Museu de Arte Contemporânea da USP. Sua diretora, Ana Gonçalves Magalhães, exulta, declarando que essa doação é “um marco na história dos museus de arte do Brasil”.

O modernismo no Brasil fez surgir grandes personalidades que seguiram percursos individuais marcados. O que une Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Brecheret ou Portinari é o campo grande da modernidade e não um, ou alguns, movimentos dentro dela. São modernos, ou modernistas, e basta.

É diferente com os artistas que formaram o trio Graz/Gomide. Eles se embeberam na corrente do art déco, que trazia uma imagem específica da modernidade para a vida cotidiana, da arquitetura ao design.

Esse movimento teve uma penetração internacional extraordinária, em edifícios notáveis —como o Chrysler, de William van Alen, em Nova York—, mas também em arquiteturas modestas, muito corriqueiras, que se espalharam pelo mundo todo e durante bastante tempo.

É comum encontrar casinhas art déco em cidades do interior brasileiro: Anna Mariani, percorrendo o Norte e o Nordeste, fotografou fachadas simplíssimas, em lugarejos perdidos, que traiam, no recorte de um friso, na geometria dos motivos, suas origens art déco.

Porque geometria é a palavra-chave para se compreender esse movimento. O historiador André Chastel teve uma expressão muito feliz para defini-lo: é “a poda da forma”. Poda, como se faz com as árvores, tolhendo a ramificação livre para lhes dar um aspecto nítido. A modernidade se geometrizava.

O movimento nasceu por volta de 1910, contra a moda art nouveau, esta inspirada na fluidez livre dos movimentos vegetais, em traços elegantes e flexíveis. O art déco foi definitivamente universalizado na enorme exposição que ocorreu em Paris, no ano de 1925. Ergueram-se muitos pavilhões, alguns financiados por lojas de departamento, outros por países ou firmas diversas.

Nesse universo, que instalava uma cidade futurista efêmera à beira do Sena, o edifício mais célebre foi, sem dúvida, o Pavillon de L’Esprit Nouveau, concebido por Le Corbusier. Esse pavilhão não era art déco, se queria distante do caráter decorativo do resto, mas não escapava da geometrização reinante.

A grande mostra se chamou “Exposição Internacional Artes Decorativas e Industriais Modernas”. Aqui, se associa outra palavra-chave, que combina com geometria: indústria.

Não apenas porque as mudanças nas formas deviam ser aplicadas em objetos industriais, mas porque o art déco assumia a estética lisa, regular, perfeitamente recortada —e geométrica, está claro— que tomavam os produtos fabricados pela indústria. O art déco tem um espírito de disciplina, de ordem. É como que a manifestação visível de um autoritarismo moderno: a forma deve obedecer à simplificação da linha e da superfície.

Isso, porém, não significa rigidez ou brutalidade. A exposição do MAM mostrou como as formas se espiritualizam em uma elegância incomparável, em uma invenção que busca a originalidade diante das formas tradicionais e naquilo que o art déco pedia: integração harmoniosa de todos os objetos no mesmo ambiente. E como, nesse espírito, John Graz, Regina e Antonio Gomide foram imensos criadores.

Já se estão preparando, em Paris, mostras e manifestações diversas para o centenário da exposição art déco, em 2025. No mundo inteiro haverá ecos para isso. O art déco é original e importante: basta lembrar de Vicente do Rego Monteiro e do “estilo marajoara” que, nos anos 1930, associou os temas geométricos indígenas ao espírito dessa decoração moderna.

A doação muito generosa de Fulvia e Adolpho Leirner ocorreu, portanto, em um momento mais que oportuno, contribuindo para que o MAC-USP possa pensar em uma resposta brasileira à altura dessas celebrações.

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