Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Visão de Bolsonaro sobre a fragilidade humana leva à tirania da força

'Chega de mimimi', que morram os fracos, desde que os fortes sobrevivam compõem discurso que nos traumatizou

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A arte nos tempos da Revolução Francesa tinha uma missão: educar para a virtude política e cívica. Os artistas buscavam exemplos na Roma e na Grécia antiga, assim como em heróis contemporâneos, insistindo na pedagogia do homem político virtuoso.

Bruto, Sócrates, Marat estavam ali para ensinar o bom caminho ao homem que a Revolução queria formar para os novos tempos. Os historiadores da arte chamam momento artístico de neoclassicismo, mas os artistas e críticos daquela época o chamavam de "arte regenerada". Era isso que queriam: regenerar a humanidade, tornando-a honesta, consciente, justa, fraterna.

Pintura
'A Morte de Sócrates' (1787), de Jacques-Louis David - Coleção Catharine Lorillard Wolfe, Fundo Wolfe, 1931/MET/Reprodução

Quando se pensa no mundo político real, em particular no universo brasileiro, essa produção que misturava pedagogia e virtude parece nobre, vigorosa, artisticamente esplêndida, mas sobretudo, ingênua.

A política é um jogo, e o jogo, os cassinos, atraem as máfias, a bandidagem, a desonestidade. Por trás da representação pública do que ocorre em Brasília ou em qualquer outro centro político, imagino uma nebulosa de negociatas, de trapaceiros, de inescrupulosos capazes de tudo, até mesmo de assassinato, em benefício do interesse pessoal. Do lado de cá, a plateia não vê nada, a não ser quando estoura um escândalo. Do cotidiano político, sente-se apenas o mau cheiro.

Sei muito bem que os políticos não são todos assim, muito felizmente, e que há políticos motivados por seus ideais, sinceros, confiáveis. Mesmo os bons, porém, se veem obrigados a jogar de maneira nem sempre desejável. São levados a alianças incômodas, a concessões, a desvios e voltas: é um esforço permanecer íntegro nesse jogo que tem tantos lances escusos.

O político não pode ser como o gato de Shakespeare, que quer pescar o peixe sem molhar as patas.

Muitas vezes, o eleitor comum fica na escolha do que lhe parece menos ruim. É uma das condições da democracia. Raro é termos o candidato ideal, e terminamos por escolher o menos distante daquilo que queríamos.

Portanto, a escolha é quase sempre relativa: as qualidades do meu candidato em relação às dos outros. A não ser que eu vire um fanático e acredite no meu como quem acredita no messias ou que eu vote por puro interesse, em qual caso pouco importam as qualidades ou defeitos do político.

Nas democracias, as instituições políticas são as garantias das instituições civis, das quais elas tomam as formas. Para que funcionem, é preciso que se garantam contra os abusos da força, que levam aos regimes ditatoriais, e aos interesses escusos, que conduzem ao seu próprio enfraquecimento.

Temos um trauma com o presidente atual, não só porque ele parece estar abaixo de qualquer escala relativa, mas porque atuou incessantemente para enfraquecer as instituições civis.

Os abusos da força significam a perda dos poderes de todos em benefício de alguns. Significam também a exclusão de tudo o que não é forte, ou seja, a exclusão da virtude que mais nos transforma em humanos: a fragilidade.

A força tem, para si, todos os preconceitos positivos: seja forte, lute, vença, é o que ouvimos sempre quando estamos diante de dificuldades. A fragilidade, não. Ela é sentida como inferior e indesejável.

Ora, é a fragilidade que nos humaniza. Não sou nada religioso, mas estou convencido de que uma das belezas do cristianismo foi a constituição de um deus humano e frágil, o anti-Baal, e mesmo, o antiterrível e cruel Deus do Antigo Testamento. Um deus homem que se pôs do lado dos frágeis, dos doentes, dos pecadores e que lhes deu a consciência da fragilidade como um valor positivo.

A fragilidade é constitutiva da dimensão humanista. Sem ela, descambamos na tirania da força. Os bolsonaristas e o próprio Bolsonaro empregam, com frequência, "frescura" e "mimimi", de modo muito depreciativo, para designar a fragilidade. Durante a pandemia da Covid, quando ficou tão exposto o quanto somos frágeis, o presidente dizia: "Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas".

Está claro, aqui, o triunfo da força como valor: que se lixem os fracos, que morram, não importa, desde que os fortes sobrevivam. Eu sou "atlético", sou poderoso, o resto que se dane.

Sei que não é fácil a consciência de que somos vulneráveis, imperfeitos, fracos. Sem ela, porém, todo caráter positivo de nossa força se esvai. É muito bom ser jovem e saudável, mas o jovem saudável que não tem consciência da fragilidade que mora dentro dele é uma espécie de monstro que se ilude, perdido em uma energia que ele crê eterna.

Sem contar que existem muitos que não são nem jovens nem saudáveis e que são seres humanos também.

A democracia não é a tirania dos fortes: isso é ditadura. Sua missão é de incorporar todos, incorporar as fragilidades e as forças, para que os débeis e desprotegidos não sejam excluídos ou esmagados.

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