Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Perseverança movia Bruno Pereira e Dom Phillips, não impulso de coragem

Resistência depende mais de comportamento cotidiano que se mantém fiel a si próprio que de grandes gestos heroicos

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A coragem foi várias vezes concebida como uma virtude pela filosofia. É, porém, uma noção pela qual não tenho empatia e muito menos simpatia.

Há virtudes que instintivamente me seduzem: a humildade, o respeito, a fraternidade, a compreensão do outro, a mansuetude —que reconheço como virtudes cristãs, embora eu não seja em nada religioso—, além do conhecimento, da busca sincera pela análise compreensiva das questões, da desconfiança de mim e, em particular, essa virtude que nos oferece a consciência de nossa humanidade, a fragilidade.

Se eu propuser por aí algumas dessas virtudes —humildade, respeito, fraternidade, compreensão do outro, conhecimento, análise, autodesconfiança, fragilidade—, a adesão deve ser baixa.

Não imagino algum bolsonarista aderindo a elas, mas, se eu propuser a virtude da coragem, tenho certeza de que aderirão imediatamente, porque a coragem é uma virtude viril.

Manifestação de apoiadores de Jair Bolsonaro na avenida Paulista, em São Paulo - Eduardo Knapp - 1º.mai.22/Folhapress

Os helenistas nos contam que, na Grécia Antiga, a palavra que significa coragem é andreia, derivada de andros, homem. Andreia é a virilidade, a bravura e ela designa, antes de tudo, a coragem do guerreiro, do soldado, do militar. É a qualidade belicosa por excelência.

Sabemos que, na formação do gênero masculino, a coragem é estimulada: não tenha medo, menino não pode ter medo, seja homem, seja macho, enfrente, tenha coragem, não fique para trás —e o célebre: homem não chora. Todas essas são expressões ditas aos meninos, que se vinculam ao princípio da coragem. A coragem torna-se uma obrigação masculina. Ela surge como constituição e traço da masculinidade.

A coragem é movida por pulsões. Não é racional, é um afeto, um impulso da alma. A pulsão da coragem é um pico, não uma axialidade.

Coragem vem de cor, palavra latina, que significa coração. Ela surge, portanto, por impulsos viscerais que nos propulsionam a enfrentar inimigos ou dificuldades.

Quando se lê sobre a coragem, há, implicitamente ou não, a ideia de que ela, sozinha é insuficiente. Mais ainda, se descontrolada, é perigosa. O filósofo Vladimir Jankélévitch escreveu que a decisão corajosa é tomada na noite de uma cegueira momentânea.

Ninguém poderá dizer que não houve nazistas corajosos, por exemplo. O bandido é tão corajoso quanto o policial que o persegue. Coragem vinculada à ética, ao bem e ao mal.

Espantoso, porém, é que a pulsão da coragem tenha conservado um valor tão intensamente positivo. Não é difícil encontrar reflexões sobre os valores positivos da coragem. Muito mais difícil encontrar um elogio da covardia.

A Mãe Coragem, de Brecht, exclama: "Coragem! Em um bom país, uma virtude como essa não seria necessária. Todos nós poderíamos ser covardes e relaxar". A paz, o bom governo garantiriam a covardia de cada um. O paraíso seria feito de covardes.

E Victor Hugo, em "Os Trabalhadores do Mar": "Quem só é audaz tem apenas um arroubo, quem só é valente tem apenas um temperamento, quem só é corajoso tem apenas uma virtude; o obstinado com o verdadeiro possui a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: Perseverando".

Aí está uma virtude que é menos gloriosa e heroica que a coragem, mais subterrânea e mais difícil: perseverar nas convicções que alimentam nosso modo de ser. Essa perseverança não é a explosão de um impulso, a vitória de um momento, é a continuidade de uma trajetória de vida.

Hugo abre, com a palavra "perseverando", a direção da resistência. A resistência depende menos do grande gesto heroico que da atitude contínua, do comportamento cotidiano que se mantém fiel a si próprio. É menos gloriosa e mais difícil que a coragem, que se situa no arroubo de um instante. Porém, para tempos de infortúnio, o grande mérito está em resistir.

A morte recente de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia, terrível testemunho do estado caótico em que se encontra nosso país, é um exemplo. Eles não estavam ali por um impulso de coragem, mas porque simplesmente um era jornalista e o outro, indigenista. Estavam ali fazendo o trabalho que era o deles e que preenchia a vida que consagraram a esse trabalho. Eram perseverantes.

A missão à qual se consagraram não era apenas aquela que os conduzia ali naquele momento. Ela estava em suas profissões e participava de todas as atividades de suas vidas. O risco de morte fazia parte dessa perseverança.

O gesto heroico é mais fácil que uma vida de perseverança e de fidelidade a si próprio. No caso dos dois assassinados, nem coragem nem covardia entram em questão. Eles estavam ali porque tinham que estar ali.

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