Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Festival Amazonas de Ópera mira alto e entrega apresentações primorosas

Evento enfrentou desafios e reuniu obras icônicas entre clássicos e peças inovadoras

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O Festival Amazonas de Ópera de 2023 foi um formidável acontecimento. Ele mostrou no que resultam investimento humano, artístico e amor pela música. A prodigiosa edição de agora tem um passado de 25 anos. Durante esse tempo, atravessando vários governos mais ou menos favoráveis a ele, seu alento –diante de todos os percalços do que significa fazer música neste país, do que significa fazer música no âmago da floresta amazônica— nunca esmoreceu.

Atores interpretam personagens da ópera Peter Grimes. Um deles que está à frente, de jaqueta vermelha, parecendo cantar,
'Peter Grimes', de Benjamin Britten perpassa natureza humana no Festival Amazonas de Ópera - Foto: Michaeldantas /Instagram @festivalamazonasdeopera

O Festival Amazonas de Ópera dá uma lição a todos do que é um projeto cultural sólido e apaixonado, inteligente, claro, perfeitamente dominado, e que põe como objetivo exclusivamente o serviço à arte.

Desnecessário dizer que o festival se move dentro de orçamentos muito estreitos. Mas ele consegue, graças à boa gestão dos recursos, grandes resultados. O retorno econômico, social, humano, é enorme. E a qualidade artística é superior.

É preciso ter consciência do que ele já fez: qual teatro no Brasil encenou a "Tetralogia", de Wagner? Enfrentou partituras tremendas como "Les Troyens", de Berlioz, ou "Lulu", de Alban Berg? O festival sempre visou alto, e sempre conseguiu manter-se à altura das obras que produz.

Neste ano fez algo de inédito. Sediou a Ópera Latinoamérica (OLA), organização que agrega teatros de ópera ibero-americanos, composta por instituições de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, Guatemala, México, Peru e Uruguai.

Organizou seminários, palestras e debates. Trouxe numerosos agentes culturais, assim como jornalistas brasileiros e internacionais. Assegurou a logística para esses mais de cem participantes. Além disso, reuniu um público nacional e internacional muito exigente. Todos saíram eufóricos e boquiabertos.

É preciso ter consciência do que ocorreu. O festival promoveu a restauração da partitura de "O Contractador de Diamantes", obra de Francisco Mignone, que foi cuidadosamente realizada pelo maestro Roberto Duarte.

Essa ópera, encenada pela última vez nos anos de 1950, teve assim, em Manaus, uma reestreia. É uma obra admirável, uma verdadeira redescoberta que deixou todos entusiasmados. Retomou uma produção realizada no ano passado: "Peter Grimes", de Benjamin Britten, ópera de uma tremenda dificuldade para a orquestra, para o coro, para os cantores e, está claro, para o maestro.

Fez uma coisa que nenhum teatro contemporâneo realiza: a apresentação de "Anna Bolena", de Donizetti, sem nenhum corte, absolutamente integral, em mais de três horas e meia de espetáculo, deixando o público arrebatado até a última nota, sem sentir o tempo passar.

Trata-se de uma lição para regentes que gostam de cortar, supondo que o público não suporta tanto tempo de música: paixão e inteligência mantêm o interesse e dispensam reduções na partitura. "Anna Bolena" não era dada no Brasil desde os anos de 1840.

E houve, enfim, a primeira apresentação encenada de "Piedade", de João Guilherme Ripper, ópera expressiva sobre a tragédia da morte de Euclides da Cunha.

De hábito, o Festival Amazonas de Ópera apresenta seus espetáculos espaçadamente. As condições de produção, de ensaio, não incitam datas muito próximas uma das outras. Com a presença da OLA, porém, o festival decidiu que deveria reunir as quatro produções mais importantes num único bloco.

Uma proeza com consequência favorável: quatro óperas juntas formam um estímulo para o público viajar até Manaus e, se quiser, pode passar uma semana ouvindo ou assistindo às apresentações, completando o prazer da ópera com a descoberta da cidade, com passeios pelo rio. Essa semana de ouro atraiu gente que nunca tinha ido para Manaus.

As óperas foram dadas em quatro dias seguidos, do 18 ao 21 de maio. Não é pouca coisa. A Amazonas Filarmônica teve que assegurar quatro obras de natureza completamente díspar, de estilos muito diversos, regidas por três maestros diferentes. Uma das qualidades do festival é que a batuta não é reservada a um só regente ciumento e possessivo, mas compartilhada generosamente.

Fernando Malheiro, o diretor do festival, regeu "O Contractador de Diamantes" e "Peter Grimes", imbuído de sua costumeira inspiração; Otávio Simões, preciso e entusiasta, regeu "Piedade", e Marcelo de Jesus, com uma qualidade de atenção e de fraseado impressionantes, regeu "Anna Bolena". As montagens foram finas, inteligentes, em entendimento com os bons cenaristas, figurinistas, maquiadores. Os solistas estiveram à altura das formidáveis exigências.

Os grandes responsáveis são Luiz Fernando Malheiro, diretor e mago do festival, regente insuperável no conhecimento da ópera e do canto, e Flavia Furtado, diretora-executiva, que estrutura e organiza tudo aquilo. O que fazem ali não encontra equivalente em termos de vitórias culturais contra um oceano de dificuldades.

Sublinho esse feito porque é raríssimo descobrir no Brasil tal seriedade e tal continuidade em projetos culturais de qualquer gênero. Entre nós, a cultura vive à matroca, entre o improviso e o descaso, o aproximativo e a empulhação, seja do poder público, seja de patrocinadores.

Resistir à engrenagem manquitola e emperrada da cultura no Brasil confere ao Festival Amazonas de Ópera algo de heroico. É o triunfo de Fitzcarraldo.

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