José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu União Europeia

Soluços de imagem

Foto de Bolsonaro em cama de hospital é notícia ou propaganda política?

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Leitores se queixam da foto de Jair Bolsonaro, sem camisa, tirada no Hospital das Forças Armadas, em Brasília. A imagem, extraída das redes sociais do presidente, alastrou-se por quase todos os sites noticiosos na noite de quarta (14) e em algumas Primeiras Páginas do país na manhã seguinte. Entre os jornais de grande circulação, Folha e O Globo entenderam que havia notícia ali.

É fácil dizer que sim, que a imagem deveria ser publicada. A saúde do incumbente é de evidente interesse público, sua existência, em termos práticos, está emprestada ao país pelo período do mandato, dependemos de suas ações, faculdades mentais, decisões. Passeios de moto, o meio de transporte mais perigoso do Brasil, deveriam ser vistos com reservas; uma interminável crise de soluço, com preocupação. Trata-se de um paciente com histórico de operações delicadas, derivadas do atentado de Juiz de Fora, em plena corrida eleitoral, há quase três anos.

Se o argumento pessoa física não for suficiente, há que se ponderar a questão institucional. Não é todo dia que um presidente se mostra seminu para a população. Sua disposição em se expor, seu culto à personalidade de rede social, assim como os impropérios lançados contra congressistas, ministros do Supremo e jornalistas, merecem registro. Sempre.

Ilustração mostra caixa com moldura vermelha, com um martelinho pendurado a um fio abaixo. Dentro dela, um estetoscópio. Escrito em cima do vidro: Em caso de queda nas pesquisas, quebre o vidro
Carvall

É ainda mais fácil defender por que a imagem de Bolsonaro não deveria ser publicada. Boa parte dos motivos já foram mencionados, basta trocar o sinal. O presidente tira proveito da própria desgraça, quer ser visto como mártir, está em campanha permanente, precisa tirar a atenção dos escândalos de seu governo, que se empilham na CPI da Covid, e fugir do raso de popularidade que alcança nas pesquisas de opinião. Dar espaço para ele neste momento é cair em toda essa esparrela.

Se o argumento populista não bastar, resta finalmente a questão estética. A imagem, para dizer o mínimo, é de mau gosto, apelativa, tosca. Aliás, uma marca registrada do mandatário, que procura legitimar-se com leite condensado, chinelo com meia e camisa pirata de clube de futebol.

Escolher fotografia para a Primeira Página não é tarefa fácil. Algumas vêm prontas, como naqueles dias em que todos os jornais se parecem. Outras são trabalhadas ou demoram para surgir e, na última hora, não se encaixam. Há aquelas cuja escolha embute desafios sobre a mensagem que se estará passando. É ou deveria ser o caso da imagem de Bolsonaro enfermo.

A dinâmica no site é completamente outra, já que a audiência e o trabalho dos concorrentes piscam sem parar na tela. O trabalho não é menor, só diferente. Exclusividade é questão de segundos e, no fim do dia, as escolhas importantes caminham naturalmente para as mesmas direções. Daí a foto do presidente ter sido quase unanimidade na quarta.

Tudo é jornalismo, o dilema é o mesmo, não importa a plataforma. Notícia bruta ou propaganda política? O presidente se mitifica ou assim quer ser visto, escreveu Thiago Amparo no excelente texto "A morte em Bolsonaro". A Folha precisa colaborar com esse processo? Consegue escapar dele? No contexto atual, faz alguma diferença sair ou não no jornal?

Faz. Imagens como a de quarta não são soluços. Bolhas e robôs do bolsonarismo trabalham de forma incessante desde então, como mostrou O Globo na sexta, mas falam, em grande parte, aos convertidos. O presidente precisa aparecer na mídia profissional. Que faça por merecer, lutando pela vida dos outros para variar.

O carbono não é nosso

A cobertura de ambiente ganhou outra dimensão na semana que passou. Enquanto Alemanha e Bélgica se afogavam em inundações históricas e o oeste americano ardia em chamas, a União Europeia lançava seu plano de combate às mudanças climáticas. O bloco vai instituir um imposto de importação de carbono. Bens produzidos sob legislação mais permissiva de emissões serão taxados para que a competição com o equivalente europeu seja justa.

Pense agora no Brasil resultante de Salles e Bolsonaros e imagine o que vai acontecer por aqui no futuro. O Financial Times nem pensou e já pediu, em editorial, que investidores (US$ 7 trilhões em ativos), os que há um ano pressionaram o país pelo fim do desmatamento na Amazônia, levem a ameaça adiante. Em nome da "credibilidade do compromisso ESG" que assumiram.

A Folha, assim como alguns de seus principais concorrentes, já abriga uma seção dedicada à sigla que resume as boas práticas ambientais, sociais e de governança. Empresas se esforçam para mostrar números e imagem de que trilham o novo caminho. Está na hora, portanto, de seus dirigentes participarem um pouco da discussão real que o governo brasileiro finge não existir.

É papel da imprensa empurrá-los para a arena.

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