José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

José Henrique Mariante
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Prazer, Marília Mendonça

Folha sabia o tamanho da notícia e, mesmo assim, se atrapalhou

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em 2015, a Folha e boa parte da chamada grande imprensa acordaram para um Brasil que não existia em seus cadernos de cultura. Cristiano Araújo, cantor sertanejo, morreu junto com a namorada em um acidente de carro em Goiás. Uma avalanche vinda das redes sociais varreu as Redações desprevenidas. A verdade era que jornalistas não sabíamos quem era Araújo, muito menos seu real tamanho. Ou o do gênero sertanejo.

A cobertura pífia dos jornais contrastava com o sensacionalismo das TVs, enquanto o país real aflorava pela internet. O choque foi grande, e a Folha, como de hábito, discutiu a própria ignorância. O jornalista Fabio Victor, então editor-adjunto da Ilustrada, descreveu o tombo em artigo. "Ontem muitos descobrimos que nossos gostos se limitam aos daqueles com quem convivemos." Detectou a receita ("Cristiano em geral conta a dor do amor demais") e lembrou de "Notícias do Brasil", de Fernando Brant e Milton Nascimento. "A novidade é que o Brasil não é só litoral/ É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul/...Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil,/ não vai fazer desse lugar um bom país."

Sexta-feira (5). Acidente de avião matou Marília Mendonça, 26, e outras quatro pessoas em Minas Gerais. A artista mais ouvida do país, 36 milhões de seguidores no Instagram, rainha da sofrência, não era uma desconhecida para a Folha. Há cerca de quatro anos, um excelente especial do jornal, "Música muito popular brasileira", analisou 134 bilhões de execuções no YouTube de 2014 a 2017. "A artista mais ouvida do país, a cantora sertaneja Marília Mendonça, 22, tocou 31 vezes mais que Chico Buarque, 73, nos últimos três anos", resumia o texto da reportagem de abertura.

Um vídeo da TV Folha apresentava a personagem a quem não a conhecia. "Um dia você vai levar um chifre, que, além de você cantar sertanejo, você vai compor sertanejo do mais sofrido que tiver", conta Marília sobre uma conversa no início de carreira. Já estão lá o feminismo, a autoestima e o bom humor: "Sofrência é um motivo criado para encher a cara". E a balança: "Assim que a gente decidiu que eu ia cantar, meu empresário falou 'agora vamos arrumar uma academia, né? Vamos na nutricionista'. Falei, ih, esse negócio não combina muito bem comigo... Acho que você tem que se amar".

Ilustração de Carvall, em preto, branco e cinza de uma dobradura de papel jornal em formato de avião. Ele está no chão, inclinado para a direita e com a ponta amassada para cima. Uma sombra projeta-se para a esquerda
Carvall

Sexta-feira (5). A discussão poderia ser sobre as imagens cruas do acidente e do corpo morto ao vivo na TV; ou a decisão acertada, por tudo que já foi escrito aqui, de noticiar a sua morte na manchete do impresso, a despeito da decisão de Rosa Weber sobre as emendas de relator; ou a opção, mais apelativa, de dar a foto maior para o avião na cachoeira, receita idêntica à usada com Ayrton Senna, em 1994.

A discussão, porém, girou sobre dois parágrafos de uma análise assinada por Gustavo Alonso, colunista da Folha, doutor em história e especialista em sertanejo, aquisição recente do jornal para ocupar a lacuna descoberta em 2015. "Nunca foi uma excelente cantora" é a frase que inicia o primeiro trecho. "Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança" é a que começa o segundo período.

Se não leu o artigo, mas já tirou suas conclusões, saiba que a torcida do Flamengo e a do Corinthians juntas fizeram a mesma coisa nas redes sociais. O recorte dos dois parágrafos foi a avalanche de turno nas redes sociais, mas levando apenas a Folha e o colunista para o tribunal da internet. Um estrago.

Várias vozes do próprio jornal se levantaram contra o artigo. Machismo, feminismo, autoestima, gordofobia, estava tudo lá. Hábito mantido, a Folha critica a Folha.

Os outros 18 parágrafos do artigo de Alonso são interessantes. Seu depoimento no podcast Café da Manhã, na segunda (8), é ainda mais completo. Desenvolve melhor sua tese sobre a qualidade dela como cantora e dos cantautores brasileiros. Contrasta com a de Caetano, que descreveu a voz dela como uma potência.

A Ilustrada alega que não poderia censurar um texto de opinião, que não é possível confundir obituário com hagiografia. Concordo, mas me pergunto se quem leu o artigo antes de sua publicação não percebeu o potencial de dano daqueles dois parágrafos. A questão da balança permeia toda a análise, mas apenas o trecho destacado nas redes dá margem para execração. Ou quem leu não viu problema?

De sexta (5) a sexta (12), a Folha publicou 110 textos com Marília Mendonça no título, mais do que a artista mereceu nos últimos dois anos, 73 artigos desde novembro de 2019. Nestes, nenhuma crítica de disco, análise sobre feminismo ou entrevista. Foram, em geral, reproduções pouco elaboradas de postagens em redes sociais sobre shows, namoros, o filho e também sobre a balança.

A Folha desta vez sabia o tamanho da notícia, mas ainda está longe do Brasil que vê as rainhas, não só as gordinhas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.