José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Jornalismo de empolgação

Os 5 do submersível, os 750 do naufrágio e a maquete maior que 11 casas

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"É impossível escapar sem ajuda." "Tem só um botão e é dirigido por controle de videogame." "Tem ‘cerca de 40 horas’ de oxigênio." "Sons de batidas são ouvidos." "Oxigênio vai durar mais do que pensam." "Mulher do piloto é descendente de casal morto no Titanic." "Termina prazo estimado de oxigênio." "Médico explica chances de sobrevivência conforme oxigênio diminui." "Catastrófica implosão." Tudo isso saiu em títulos da Folha, um resumo do transe coletivo que nos acometeu na última semana.

"Cérebro não assimila uma implosão", diz o enunciado da Deutsche Welle, mas é capaz de acompanhar em ritmo de novela a desgraça de bilionários que procuravam a cabeça de rinoceronte destes tempos: a experiência exclusiva, registrada não como troféu na parede, mas na tela do celular.

Os dias foram pródigos em explicações sobre como não resistimos a acontecimentos dessa espécie. Análise na Folha entregou o crédito ao grande objeto provocador da aventura, o Titanic. Difícil discordar, sobretudo depois de saber que a música do filme, com Céline Dion, tocou mais de 500 mil vezes, apenas no Spotify e apenas na quinta-feira (22).

O texto do jornal comentava o "viés moralista" que predominou na discussão em torno do interesse midiático do caso, infinitamente maior que o percebido diante da desgraça cotidiana de imigrantes náufragos no Mediterrâneo. Uma semana antes, como se sabe, embarcação que partiu da Líbia com 750 pessoas, a maioria paquistaneses, foi a pique depois de supostamente ter recusado oferta de ajuda de uma patrulha costeira grega.

O índice da Folha escancara a questão. Até sexta-feira (23), o episódio mediterrâneo havia sido contemplado por três reportagens do jornal. Em menos dias, o capítulo atlântico provocou a edição de mais de 30 textos e contando. É uma comparação simplista, por certo, são eventos completamente diferentes. "Como diz o ditado, uma morte é uma tragédia, um milhão é estatística", escreveu uma colunista do inglês The Guardian, para lembrar logo depois das cerca de 500 pessoas ainda desaparecidas, entre as quais 100 crianças, que estariam debaixo do deque do pesqueiro. Cem crianças, ela repete no artigo.

Um peixe horrendo do fundo do mar, desenhado em preto e branco, engolindo os dizeres: "manchete do dia" em azul. O fundo é branco.
Carvall

Não é um problema o jornalismo se empolgar com determinados assuntos. Isso ocorre porque os leitores estão igualmente empolgados. Não importa se os desgraçados são bilionários, mineiros do Chile, submarinistas da Argentina ou garotos da Tailândia. Os fatos transcendem a intenção jornalística. Problema é não haver intenção jornalística nos momentos em que o noticiário precisa ser imposto ao público, quando é preciso reiterar o leia, veja isso, é importante.

A verdade dura é que não estaríamos nos lembrando das cem crianças não fossem as cinco almas perdidas do Titan.

Dá um Google

Submarino ou submersível? No meio da novela, a Folha respondeu: submersível. O jornal conversou com um professor da USP, que forneceu aos leitores conhecimento e curiosidades da engenharia naval.

A instrução, no entanto, não sobreviveu nem ao título seguinte da cobertura, que desde então insiste em submarino em praticamente todos os enunciados. É o que determina o intransigente mecanismo de busca. O léxico que se vire.

Afogando em números

Em agosto de 2000, em outra saga acompanhada detalhe a detalhe pela mídia mundial e por boa parte do planeta, o submarino atômico Kursk afundou no mar de Barents. Autoridades russas demoraram a reconhecer o acidente e a aceitar ajuda de outros países no resgate, receosas de comprometer segredos militares, o que só amplificou o drama.

Revelada sua localização, uma constatação banal: estacionado no leito do mar, a 108 metros de profundidade, o casco, de 154 metros de comprimento, sairia da água se tivesse uma extremidade elevada. Não estava íntegro, a manobra era impraticável, tudo não passava de um exercício de possibilidades para ilustrar dimensões e circunstâncias.

Na sexta-feira (23), a Folha fez um novo exercício de possibilidades. Aquilatou o custo da detalhada maquete de um bairro planejado de São Paulo pelo preço de carros de luxo: R$ 4 milhões, o suficiente para comprar uma Ferrari e um BMW. A comparação fazia nexo com a reportagem, que listava os atrativos do grande empreendimento na zona sul, local de um boom imobiliário.

No site do jornal, a imagem da instalação dividia a seção de fotografias com uma cena bem diferente de construção: as polêmicas casas de 15 metros quadrados erguidas em Campinas para abrigar famílias de uma ocupação. A Folha perdeu a oportunidade de fazer outro exercício de possibilidades. Apenas na área ocupada pela maquete, 170 metros quadrados, caberiam 11 dessas casas. Dimensões e circunstâncias ajudam o jornalismo.

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