José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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A mão de Deus de Maradona não é tão diferente do fio de cabelo de Cristiano Ronaldo

Mas o futebol de 1986 e o de 2022 já não têm mais nada a ver

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Na última segunda-feira (28), ao minuto 6 do segundo tempo, durante os 2 segundos em que a bola viajava, sem que mais alguém a viesse tocar, entre o pé direito do meia português Bruno Fernandes e a desamparada tristeza do goleiro uruguaio Sergio Rochet, muitas revelações aconteceram.

Por baixo da trajetória elíptica que desenhou o primeiro gol da seleção de Portugal contra a do Uruguai, um "quase momento" aconteceu. "Quase momento" porque, apesar de realmente não ter acontecido, sua quase possibilidade suscitou um inusitado real interesse na indústria do futebol. Foi por um fio de cabelo.

Cristiano Ronaldo entre dois defensores e o goleiro Rochet sobe para tentar cabecear no jogo Portugal 2 x 0 Uruguai, no estádio Lusail - Matthew Childs - 28.nov.22/Reuters

Até houve quem comparasse a mão de deus de Maradona, que há 35 anos subiu mais alto que as do goleiro inglês Peter Shilton, com o fio de cabelo sem gel de Cristiano Ronaldo. Mas, apesar das materialidades adjacentes, o mais substantivo é que o futebol de 1986 e o de 2022 estão mais longe um do outro que um reator está de um carrinho de mão.

Onde antes se lia "milagre", hoje a tecnologia escreve apenas "negócio". Por isso assistir à Federação Portuguesa de Futebol, qual terraplanista da zaga, pedir para Cristiano o gol que era de Bruno, é pleito difícil de compreender. Os dois são portugueses, jogam na mesma equipe, participaram da mesma jogada e até festejaram juntos o mesmo gol.

Que os comentaristas comentem, o povo discuta e a celeuma se instale nos festejos da imensa futilidade coletiva dos adeptos —hoje tão sã e necessária, depois dos últimos tempos de divisão entre brasileiros— até é compreensível. Mas a atitude das autoridades futebolísticas lusas não.

Ela revela que o futebol perdeu a magia daquele momento em que do braço salta uma mão que ninguém vê e se transformou em uma indústria ditada pelos sensores de um chip que não quer assinalar um pelo raspando no couro da bola. Ela mostra um futebol cada vez menos humano e no qual mesmo jogadores de carne e osso são cada vez mais heróis de videogame.

Recordando o futebol-arte que amamos, ele nos convoca a protestar. Chuto um poema de Vinicius! "[...] Eu quase tive um enfarte eu quase tive uma embolia tinha uma coisa que bolia dentro do meu cérebro eu acho que era o Puskás chutando minha massa cinzenta de tanta raiva [...]"

Qual a justa medida nesse caso se, afinal, o gol foi válido e vencemos como time? Qual a importância da autoria?

Foi a divina cabeça de Cristiano Ronaldo ou o apócrifo pé de Bruno Fernandes? Talvez nem a tecnologia nos convença e o resultado seja um canetaço de quem pode, arbitrariamente, nominar as coisas no mundo. Talvez Deus ou em nome de Deus —afinal, coisas acontecem.

Mas se estamos preocupados com autorias é preciso voltar algumas casinhas no jogo. Marta, muito antes de Cristiano, foi a primeira jogadora de futebol a fazer gols em cinco Copas e foi eleita melhor do mundo por seis vezes.

No meio dos absurdos civilizacionais tolerados pela Fifa, até essa autoria foi esquecida. Porque a agenda da igualdade e do clima que junta jatos no Cairo foi suspensa no Qatar.

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