José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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Pós-eleição mostra duas metades que esquecem fazer parte do mesmo corpo

Família, democracia, fé e progresso hoje são realidades antagônicas dependendo de quem as fala ou escuta

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No Brasil as paixões quase sempre ultrapassam o desejo, como o amor e a arte quase sempre perdem para o futebol. Porque o que nos divide é de ordem psicológica, não política, como à primeira vista possa parecer.

É por isso que nossa reconciliação será longa, terá duras fases, avanços, recuos, desânimos e indefinição. Como em qualquer luto.

Freud explica. O luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza profunda e o afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre o objeto perdido. Ele não se limita apenas à morte, mas sim ao enfrentamento das sucessivas perdas reais e simbólicas. Perder uma eleição, como esta foi perdida —e ganha—, é simultaneamente real e simbólico. Por isso o luto se aplica e se duplica.

Montagem com fotos do presidente Jair Bolsonaro e do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva
Montagem com fotos do presidente Jair Bolsonaro e do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva - Adriano Machado e Ueslei Marcelino/Reuters

Qualquer manual mirim de psicologia descreve as fases do luto com simplicidade. Tem a negação, em que o povo ajoelha e reza escutando a voz de Deus da Esplanada dos Ministérios; tem a raiva, quando caminhoneiros cortam rodovias a gritos de traição; tem a barganha, quando os ministros do STF não aceitam se reunir sem a aceitação formal da derrota; tem depressão, que ainda nem começou; e a aceitação, que desta vez nem Deus sabe quando vai começar.

Mas essa simplificação não adere ao real. Luto não é uma sucessão de fases que termina em cura ou redenção ou algo que se supere entre uma etapa e outra. O luto que começou no domingo não se aplica apenas a (quase) metade dos brasileiros, ele terá de ser vivido com a participação de todos.

Seria um erro de lesa-pátria olhar de novo com aquela condescendência das elites, para aqueles que hoje bloqueiam, entre a negação e a raiva, rodovias e mídias sociais. Foi essa soberba que no passado custou ao Brasil, entre outros males menos sonoros, a corrupção da Lava Jato e a emergência de Bolsonaro.

Durante décadas o "poder bom" da esquerda esfregou o ego da elite culta, ao mesmo tempo que ignorava suas periferias. Criou centenas de universidades, mas esqueceu as escolas básicas. Numa ponta sofisticou a ciência, na outra claudicou para a fé.

Esse poder arrogante concedeu em bandeja de prata o poder da televisão aos evangélicos que, nos antípodas da MPB, consagravam o sertanejo como um movimento cultural alternativo, na senda do crescimento exponencial do agronegócio. O dinheiro aparecia, e os excluídos, agora guiados por um mito, puderam governar.

Em resultado disso, hoje, na sociedade brasileira, família, economia, trabalho, cultura, democracia, liberdade, fé, ordem e até progresso são realidades muitas vezes antagônicas dependendo de quem as fala ou as escuta.

A angústia, a raiva e o desconforto que hoje sente metade da população contrastam com a alegria esfuziante da outra metade. A dor de uns é o orgasmo dos outros. Duas metades se esquecendo que fazem parte do mesmo corpo, vivem na mesma casa e jogam no mesmo time: o Brasil.

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