José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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José Manuel Diogo

Na Turquia, tive uma demonstração de quão enganosa é a globalização

Por outro lado, no final das contas, apesar da diferença de línguas, talvez não sejamos assim tão diferentes

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Hagia Sofia. Istambul. Domingo à tarde. Os imãs chamam para rezar. Ouve-se o canto por toda a cidade.

Não entendo uma palavra do que dizem. Eu, como muitos, acostumado às línguas de raiz românica, à universalidade do inglês e a um mundo onde todos nos comunicamos com facilidade, fico desconcertado.

Penso melhor e acredito que estou perante uma demonstração simples, mas inequívoca, de quão imperfeita e enganosa é a nossa tão apregoada globalização. A Turquia —sempre de Ataturk e agora de Erdogan— adaptou a tecnologia do Ocidente, mas nega-se a aceitar-lhe o marketing.

Famílias são fotografadas em frente à mesquita de Hagia Sofia, em Istambul, na Turquia
Famílias são fotografadas em frente à mesquita de Hagia Sofia, em Istambul, na Turquia - Daigo Oliva - ago.13/Folhapress

Tudo que é turco é distinto. Aqui, as marcas de luxo, que rivalizam em qualidade e design com as maiores do mundo, quase não são conhecidas no Ocidente; e as "maiores do mundo" são falsificadas aos olhos de todos, inclusive com o beneplácito da lei. O capitalismo global vive de hábitos, não de marcas.

Um post de Elon Musk é muito menos universal do que parece. Na verdade, qualquer país que controle suas fronteiras e sua língua, tanto hoje como há cem anos, consegue fugir ao controle das democracias capitalistas ocidentais. Sem a colaboração da cultura nenhuma tecnologia conseguirá contrariar isso.

Embora tecnologia e dinheiro sejam os elementos mais integrados dessa equação, enquanto a cultura, lugar onde toda a confiança se constrói, ficar com um papel secundário, qualquer regime permanecerá substantivamente intocável. Confere que qualquer xícara de café turco, doce de Baclava, sistema mini-estéreo contrafeito, corrida de táxi ilegal e até mesmo ingressos para uma viagem inesquecível "5 léguas em balão" pelos relevos da Capadócia podem ser pagos por sistema contactless, usando o celular.

Mas as trocas culturais não acontecem se apenas estivermos consumindo.

Por toda parte, os turistas, que, agora, sem medo de pandemias, elevam de novo Istambul ao patamar de maior cidade da Europa (mais de 15 milhões de habitantes), são oráculos permanentes desse erro original, de que os falantes de línguas com pegada global (como a língua portuguesa) presumem: acham que o mundo inteiro enxerga o futuro da mesma forma e que essa forma tem padrões ocidentais.

De novo perdido na tradução —ninguém entende o que falo e nada do que eu escuto faz sentido—, peço auxílio ao Google, habitante até agora silencioso no meu celular, mas que consigo convocar.

Quero saber por que a Hagia Sophia, que significa sagrada sabedoria, em 2020 deixou de ser museu e voltou a ser mesquita. A resposta veio, cuidadosa, de que isso poderia representar uma cedência do Estado laico turco aos muçulmanos, talvez por razões eleitorais. Mas o que meus olhos viam era um lugar cheio de cristãos e muçulmanos, juntos, rindo e rezando, num lugar aparentemente inclusivo, gratuito, aberto a todos, mas onde as mulheres já não podem se juntar aos homens no lugar central do templo.

Gokan Kaya, nosso guia na ocasião, há 27 anos no lugar, dizia que os políticos de países grandes tendiam a fazer coisas inexplicáveis para ganhar eleições. E falou da guerra da Rússia, que afoga a Turquia em inflação; de Trump nos EUA; e de um tal Boh-sohn-haro, que tinha feito o mesmo no Brasil.

Afinal, apesar da língua, talvez não sejamos assim tão diferentes.

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