Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Sinais de uma nova era?

É preciso resgatar o que há de melhor nos ideias de liberdade e inclusão de nossa tradição republicana

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O ano de 2019 abriu com o mais longo "government shutdown" da história norte-americana. Durante um mês, as atividades administrativas foram interrompidas em decorrência do imbróglio entre Donald Trump e o Partido Democrata —de maioria no Congresso— sobre a construção da famosa muralha entre o México e os Estados Unidos.

Enquanto isso, na Europa tentava-se buscar o sentido do mais novo movimento francês por justiça econômica: "les gilet ​jaunes" (os coletes amarelos). Além das atenções voltadas aos desdobramentos do brexit, cujo acordo esboçado por Theresa May seria rejeitado pelo Parlamento Britânico na primeira quinzena de janeiro.

 

Foi a partir deste contexto que acompanhei a posse de Jair Bolsonaro à Presidência da República; o discurso inaugural do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez, comprometido em “atender os anseios da nação brasileira” em defesa dos seus “mais caros valores de patriotismo e visão religiosa do mundo"; além dos esforços caricatos da ministra Damares Alves em saudar a “nova era” da política nacional.

Perguntei-me, incrédula, se existiria uma única “visão religiosa do mundo” capaz de representar os anseios de todos os brasileiros. Porque, em minha casa, durante a ocasião mais importante do calendário religioso, todo mundo discorda de tudo e todos nós vivemos em harmonia.

Além disso, quando especialistas da minha área discutem o impacto das desavenças religiosas na formação da cultura europeia e da modernidade ocidental, essas “visões” se sobrepõem de tal forma que os que acompanham o debate têm a impressão de que a nossa civilização caracteriza-se pela ausência de uma opinião uníssona e duradoura enquanto às perspectivas religiosas sobre todo e qualquer assunto.

Procede, assim, o comentário de Nietzsche em "A Gaia Ciência": a adoção acrítica de uma crença, a inibir a expressão de visões contrárias, é um reflexo do enfraquecimento da nossa confiança na capacidade do indivíduo em agir de maneira autônoma. Portanto, nas comunidades em que uma divergência de crenças e de pontos de vista é desencorajada, a inovação em qualquer campo de conhecimento torna-se mais difícil, criando obstáculos ainda maiores para essas comunidades se adaptarem às mudanças das circunstâncias.

Igualmente, questiono-me sobre quais expressões de patriotismo são bem-vindas neste momento político. A leitura de "Grande Sertão: Veredas"? Também não sei do que se trata esta “nova era” preconizada pelo vídeo da ministra Damares, cujas promessas de renovado tradicionalismo articulam-se de maneira oposta à necessidade cada vez maior de mulheres e de outras minorias em se fazer ouvir na vida pública do país.

Ora, supõe-se que as políticas identitárias adotadas por movimentos sociais de esquerda deem sinais de precariedade, a ensejar questionamentos dentro e fora do mundo acadêmico. Exemplo disto é o que escreve a cientista política Sheri Berman sobre como a "identity politics" estaria esvaziando os discursos progressistas para favorecer o populismo da direita reacionária.

Em ensaio para o site do jornal The Guardian, Berman menciona um estudo publicado pela pesquisadora Karen Stenner —The Authoritarian Dynamic, segundo o qual para se concretizar a nossa predisposição à intolerância faz-se necessário um estímulo externo ao indivíduo, a partir do qual este perceberia uma ameaça ao seu grupo de pertencimento. Assim, por exemplo, muitos homens se sentiriam ameaçados em fato de demandas feministas ao atacarem comportamentos tradicionalmente masculinos.

Isto não quer dizer, no entanto, que as demandas feitas por grupos feministas e minoritários desmereçam a atenção das instituições políticas do país. Afinal, que democracia seria esta tão exaltada, ao tempo em que festeja a preterição dos interesses dos seus cidadãos mais vulneráveis?

A solução para esse descompasso, segundo Berman, seria encontrar uma estratégia política que ressaltasse os pontos de intercessão entre os mais diversos grupos que compõem a nossa sociedade, criando uma atmosfera de maior cooperação e tolerância entre coletividades distintas.

Dito isto, na semana passada, o ex-primeiro-ministro britânico John Major concedeu entrevista à BBC Radio Four. Membro do Partido Conservador, Major posicionou-se contra o brexit e mandou um recado aos seus concidadãos e ao atual governo sobre o que realmente significa prezar pelos anseios de uma nação sob um regime democrático:

“É muito difícil aceitar o argumento de que a vontade de uma maioria —em um determinado dia, sob um determinado conjunto de circunstâncias— deva permanecer absolutamente sacrossanta, embora a opinião pública e os fatos possam mudar. A democracia é sempre matizada: 48% dos eleitores britânicos desejaram permanecer na União Europeia e, no entanto, os que votaram contra os ignoram. Se você realmente olhar para os números, (...) somente 37% dos eleitores registrados optou [pelo brexit]. Outros 63% desse eleitorado ou não votou, ou optou pela nossa permanência na União Europeia. No entanto, se sairmos sem um acordo — ou com o acordo errado — talvez 100% da população seja prejudicada.”

Que a democracia seja esse fenômeno complexo sobre o qual nos fala John Major, parece-me, hoje, algo alheio às personagens políticas mais energéticas tanto do Brasil como de outras partes do mundo. Faz-se necessário, portanto, que qualquer oposição ao espírito antidemocrático no Ocidente resgate o que há de melhor nos ideias de liberdade, racionalidade, tolerância e inclusão da nossa tradição republicana.

A começar, talvez, pela releitura do discurso de Abraham Lincoln em Gettysburg: “[para] que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra.”

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