Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ideias insistem em devorar cérebros, mesmo após sepultadas por fatos

Paul Krugman se dedica à caça de ideário caduco no discurso dos novos governos conservadores

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Quando da minha chegada à Irlanda, ao caminhar por um bairro de periferia habitado quase que exclusivamente por recém-imigrados, deparei-me com uma mercearia de produtos fora de validade onde, segundo o meu guia, poderíamos adquirir de tudo do bom e do melhor desde que estivéssemos preparados para uma provável decepção.

Na época, com pouco dinheiro no bolso, pensei em comprar alguma coisa para comer durante o passeio. Quem sabe uma barra de chocolate ou alguma outra iguaria, daquelas que a minha mãe festejava só por conseguir nos oferecer. Desisti por temer as consequências e, principalmente, as despesas de um quadro de intoxicação alimentar.

Ora, os produtos oferecidos apenas incitavam a fantasia de que eu poderia reviver o conforto e a segurança da casa dos meus pais. A suprir a carência de pertencimento social que tanto nos afeta no exterior.

Recentemente lembrei-me deste episódio ao saber de Paul Krugman, economista premiado com um Nobel, e seu mais novo livro, cujo título, "Arguing with Zombies: Economics, Politics and the Fight for a Better Future" (discutindo com zumbis: economia, política e a luta por um futuro melhor, 2020), remete ao indigesto apelo de ideias ultrapassadas e profundamente alteradas em suas configurações originais.

Assim como os monstros de George Romero, diretor de "A Noite dos Mortos-Vivos" (1968), filme em que a radiação liberada pela queda de um satélite faz com que os mortos saiam de suas covas para aterrorizar a população de uma cidadezinha, Krugman explica que uma “ideia zumbi” é todo aquele conceito que deveria ter sido sepultado por fatos e evidências contrárias, mas que, em vez disso, insiste em sair por aí a devorar o cérebro das pessoas.

No livro, como em algumas das suas colunas mais recentes para o New York Times, Krugman dedica-se à caça dessas ideias aplicadas ao discurso dos novos governos conservadores, a exemplo do negacionismo climático e da crença de que o corte de impostos sobre grandes fortunas há de beneficiar um país como um todo.

No entanto, tomo a liberdade de também utilizar-me deste conceito para destacar o exemplo brasileiro, elencando episódios que abrangem desde a tentativa de se lançar uma campanha de saúde pública e planejamento familiar baseada em um projeto de abstinência sexual até a vexaminosa sugestão de que precisaríamos resgatar uma espécie de “arte nacional heroica e imperativa”.

São propostas que evocam a ilusão de tempos mais simples e seguros, nos quais um ideal de pureza teria sido capaz de se antepor às exigências da modernidade, tal a capacidade para nos adaptarmos a uma necessidade crescente de inovação e intercâmbio cultural, bem como a um atento exame da realidade social e das motivações humanas.

krugman
O economista americano Paul Krugman, vencedor do Nobel, em evento em São Paulo - Zanone Fraissat - 16.set.2012/Folhapress

Este mesmo fenômeno examinado por Krugman é caracterizado pelo escritor britânico Howard Jacobson como uma ressurgência de comportamentos nitidamente associados a uma caricatura do Medievo, tal a adoção de um bode expiatório na tentativa de encontrar um suspeito ideal para os problemas criados pela própria sociedade.

O comentário de Jacobson dirige-se muito especificamente aos recentes escândalos de antissemitismo associados à esquerda britânica. Mas ele também pode ser tomado para ilustrar a reação de setores análogos da política brasileira ante o polêmico discurso do ex-secretário da Cultura Roberto Alvim. Na ocasião desse episódio, muita gente passou a insinuar que a comunidade judaica apoiava em massa o governo do presidente Jair Bolsonaro.

Diante disso tudo, pergunto-me como podemos ser tão ingênuos ao ponto de nos deixarmos contagiar por noções que, além de comprovadamente equivocadas, são abertamente preconceituosas.

Em ensaio para o New York Times, Richard J. Bernstein, autor de "Why Read Hannah Arendt Now?" (por que ler Hannah Arendt agora?, 2018) recorre ao pensamento da filósofa alemã para explicar o complicado relacionamento entre verdade e política, ajudando, de certa forma, a compreender como e por que nos deixamos seduzir por ideias caducas.

Para Bernstein, todas as vezes em que nos sentimos politicamente negligenciados, buscamos uma justificativa para nossa situação. No entanto, esta justificativa não precisa estar ancorada em fatos reais ou imaginados, bastando somente se apresentar como minimamente coerente e capaz de emprestar um sentido aos nossos sintomas de ansiedade social.

Esta análise encontra amparo nas reflexões de Arendt em livros como "A Condição Humana" (1958), no qual ela antecipa o argumento de Krugman ao destacar que uma das mais notáveis características da nossa época é a ausência de pensamento. Isto é, “a despreocupação negligente, a confusão desesperada ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vazias”.

Bernstein também chama a atenção para a atualidade de ensaios como "Verdade e Política" (1967), no qual Arendt questiona a fragilidade de conceitos que tomamos por incontestáveis, a exemplo da liberdade de opinião:

“Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem diferir amplamente e ainda serem legítimas no que respeita à sua verdade fatual. A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados. Em outras palavras, a verdade fatual informa o pensamento político, exatamente como a verdade racional informa a especulação filosófica.”

Finalmente, outra grande intuição de Arendt sobre a nossa política está em "As Origens do Totalitarismo" (1951), obra em que ela oferece uma longa análise sobre as ideologias que serviram de esteio para os regimes totalitários da década de 1930 e 1940.

Neste volume, Arendt precede algumas considerações do professor Rodrigo Nunes em seu ensaio para a Ilustríssima sobre a mentalidade e o modo de operação de células de extrema direita, a partir das quais a disseminação de “ideias zumbis” é praticada com o suporte em estratégias de “trollagem”. Ou daquilo que Arendt reconheceu como sendo uma das mais graves consequências da propaganda: o cinismo.

Sobre este, escreve a autora:

 “[...] Era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática.”

Ao refletir sobre a condição humana na primeira metade do século 20, Arendt recorre à poesia de René Char para afirmar que a herança política daquela geração fora deixada sem testamento. Hoje, no entanto, a obra de Arendt talvez sirva de legado para alguns representantes de uma geração que, mais uma vez, tenta resgatar a política da ameaça das “ideias zumbis”, do preconceito e, principalmente, da ausência de pensamento.

Afinal, com a experiência aprendemos que não mais vale a pena consumir ideais defuntos para alimentar as ilusões sobre um passado que nunca realmente existiu.

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