Em entrevista para o documentário da televisão holandesa “O Belo e a Consolação” (2000), o escritor e crítico literário George Steiner retoma a sua análise do quadro “O Filósofo Lendo”, de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779), para ressaltar a importância de uma leitura bem-feita no estímulo da nossa criatividade.
Nessa oportunidade, Steiner refere-se ao seu ensaio “O Leitor Incomum” (1978), em que ele procede a uma minuciosa interpretação dos vários elementos que compõem a pintura de Chardin, a começar pela rica indumentária do personagem retratado, revelando, entre outras coisas, uma relação de cortesia do leitor para com o livro:
“A leitura ali não é uma ação casual, impremeditada [...]. O leitor vai ao encontro do livro levando a cortesia em seu coração [...]. Porta-se com uma pompa gentil e cerimoniosa ao expressar boas-vindas e a expectativa de entretenimento.”
Em seguida, Steiner reflete, com habitual desenvoltura, sobre a ordem e a relação entre os objetos dispostos à mesa: a ampulheta, a evidenciar o vínculo da leitura com o tempo, no contraste entre a finitude humana e a permanência da obra —a sugerir que jamais teremos tempo suficiente para estudarmos todos os livros ao nosso alcance—, os medalhões de bronze para prender as avantajadas páginas dos antigos fólios e, finalmente, a pena de ganso a ser utilizada para anotações. Esta última, a corroborar o seu ideal de leitura enquanto interação entre o leitor e o texto:
“A pena é emblemática da obrigação de resposta inerente ao ato da leitura [...]. A boa leitura pressupõe resposta ao texto, implica a disposição de reagir a ele, atitude essa que contém dois elementos cruciais: a reação em si e a responsabilidade que isso representa [...]. Ler bem é ser lido pelo que se lê. É assumir responsabilidade pelo texto.”
No documentário, além dessa análise, Steiner propõe que uma das principais lições a se extrair de Chardin seria a de que uma leitura bem-feita é capaz de nos educar no devido valor da atenção. Segundo ele, a concentração desperta em cada um de nós o que o filósofo Nicolas Malebranche (1638-1715) — contemporâneo mais velho do pintor— teria chamado de a piedade natural da alma:
“Chardin representou muito bem a beleza da concentração. E, novamente, é isso o que nós podemos aprender com os grandes mestres. [...] Para ser devoto, você não precisa rezar. A devoção também se expressa quando você se concentra na tentativa de compreender algo fascinante e muito difícil.”
Enquanto Steiner encontra na obra de Chardin a inspiração para refletir sobre a boa leitura, em uma das minhas passagens prediletas de “No Caminho de Swann” (1913), Proust recorre à descrição da própria experiência de leitura para mostrar como o nosso envolvimento com as personagens e, principalmente, com os ambientes evocados em um livro enriquece a nossa compreensão dos atores e das circunstâncias da nossa própria vida:
“Na espécie de tela colorida de diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto eu lia [...]. Já menos interior a meu corpo que essa vida das personagens, vinha em seguida, vagamente projetada diante de mim, a paisagem onde se desenrolava a ação e que exercia em meus pensamentos muito mais influência que a outra, aquela que eu tinha à vista quando erguia os olhos do livro [...]. E não era somente porque uma imagem com que sonhamos seja sempre marcada, embelezada e enriquecida pelo reflexo das coisas estranhas que por acaso cercam em nosso sonho; pois as paisagens dos livros que eu lia não eram para mim apenas mais vivamente representadas na imaginação do que as paisagens que Combray oferecia aos meus olhos, ainda que houvessem sido análogos. Pela escolha que eu fizera do autor, pela fé com que meu pensamento ia ao encontro de sua palavra, como de uma revelação, elas se me afiguravam [...] uma parte verdadeira da própria natureza, digna de ser estudada e aprofundada.”
Se a boa leitura, como afirma Steiner, inaugura um profundo diálogo entre o leitor e o texto, por meio da inserção de anotações procedidas às margens das páginas de um livro ou mesmo de uma reflexão a partir da qual nós somos levados a perceber a realidade em toda sua riqueza de detalhes, em Proust, no entanto, esse exercício da leitura parece-me ainda mais tangível e, talvez por conta disso, semelhante ao que costumamos realizar em nosso cotidiano.
Afinal, longe de cultivar a leitura do seu querido Bergotte ou de qualquer outro livro em silêncio e na perfeita solidão do seu quarto, tal o leitor de Chardin na acepção de Steiner, o jovem Marcel —figuração parcial do próprio Proust— é convocado pela avó a dedicar-se à leitura no jardim da família: entre as trapalhadas da filha do jardineiro, a ruidosa conversa dos empregados e o burburinho da cidadezinha de Combray.
Gosto, sobretudo, de como Proust descreve a projeção de realidades simultâneas em um mesmo ambiente e, com isso, tenho a impressão que a leitura sempre acrescenta algo de novo ao modo como enxergamos o mundo. Assim, entre uma e outra frase do livro, somam-se os comentários de Françoise sobre a passagem das tropas francesas pela rua de Santa Hildegarda e uma série de outros pequenos detalhes que conferem à leitura de Marcel uma característica única: pessoal e intransferível.
Para Steiner, essas pequenas interferências caracterizariam a ausência de silêncio no mundo contemporâneo, dando-lhe a impressão de que, ao contrário do homem retratado por Chardin, todos nós estaríamos condenados à alcunha de leitores absentes. Afinal, diz-nos o crítico:
“O preço do silêncio e da privacidade será cada vez mais alto. (Em parte, a ubiquidade e o prestígio da música derivam precisamente do fato de ser possível ouvi-la na presença de outras pessoas. A leitura séria exclui até mesmo a pessoa mais íntima.)”
Mas, será que é isso mesmo? Permitam-me discordar de Steiner nem que seja um pouquinho, pois muitas das minhas leituras mais intensas foram feitas em ambientes ruidosos e informais, como no antigo escritório do meu pai, no centro da cidade do Recife, onde as palavras de um ou de outro escritor misturavam-se aos anúncios dos carros de som e ao tumulto sem fim provocado pelos vendedores ambulantes.
No entanto, cada um desses estímulos, longe de desviar a minha atenção do texto, servem-me, ainda hoje, como fixadores da memória das minhas reflexões desenvolvidas no curso dessas leituras.
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