Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Por que o conhecimento adquirido com a literatura é diferente de aprender jardinagem

Filósofo oferece hipótese sobre transformação das pessoas a partir do contato com obras literárias

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Em “Learning from a Novel” (1972), o filósofo britânico R.W. Beardsmore retoma alguns temas explorados por Gilbert Ryle em “The Concept of Mind” (1949), para tratar da nossa relação com a literatura e oferecer uma hipótese do tipo de conhecimento que adquirimos a partir da fruição de uma obra literária.

Em seu livro, Ryle teria definido dois tipos de conhecimento. O primeiro, o conhecimento proposicional (“knowledge that”), estaria relacionado ao nosso conhecimento de que algo é o caso. Por exemplo, o fato de sabermos que a capital da Argentina é Buenos Aires.

Já o segundo, o saber fazer (“knowledge how”), seria pertinente ao modo como aprendemos a executar uma tarefa a partir de um conjunto de regras que podem ou não ser explícitas, como quem aprende a fotografar com uma câmera profissional e, aos poucos, passa a operar de modo automático todas aquelas regrinhas sobre a abertura de lente, velocidade do disparador e assim por diante.

No entanto, segundo Beardsmore, nenhum desses modelos seria suficiente para tratar do conhecimento que adquirimos a partir da literatura. A sua crítica a Ryle poderia ser entendida da seguinte forma: embora a leitura de um romance como “Afinidades Eletivas” (1809) permita-nos adquirir informações sobre uma determinada época ou, até mesmo, ofereça-nos instruções de jardinagem, ainda assim o tipo de conhecimento que extraímos de um romance seria de outra ordem. Afinal, a simples leitura de Goethe não é suficiente para que alguém se torne um especialista naquele período da história alemã, tampouco jardineiro.

Johann Wolfgang von Goethe em quadro de Gehard von Kuegelgen - Reprodução

Isso posto, Beardsmore propõe um terceiro tipo de conhecimento, o conhecimento a partir de (“knowledge from”), de modo a contemplar a nossa relação com a literatura, refere-se, principalmente, às transformações que poderiam ocorrer em um individuo a partir do seu contato com uma obra. Segundo o autor, a literatura nos ensina algo sobre a vida e o conhecimento que se adquire a partir de uma obra literária pode ou não estar relacionado à mudança de uma perspectiva moral.

Na tentativa de ilustrar o primeiro caso, permitam-me a confissão de que o negroni apenas tornou-se um dos meus drinks prediletos graças a um belíssimo conto de Ernest Hemingway, “A Fábula do Bom Leão” (1951). No entanto, ainda que eu tenha tomado conhecimento desse coquetel através da leitura, a minha preferência por ele não implica necessariamente uma mudança da minha visão de mundo ou do meu posicionamento moral.

Já para ilustrar os casos em que a leitura proporcionaria uma mudança de visão de mundo por parte do leitor, podemos usar, por exemplo, todos aqueles momentos em que, ao passarmos por uma situação de dificuldades, a leitura de um certo texto literário nos ajuda a tomar consciência do problema em que estamos metidos.

Neste sentido, Beardsmore relata-nos uma história sobre o filósofo John Stuart Mill (1806-1873). Quando jovem, Mill teria se recuperado de um terrível episódio de depressão graças à leitura de William Wordsworth.

Em sua autobiografia, o célebre pensador do século 19 comenta que, quando nada mais parecia fazer qualquer sentido para ele e todas as coisas mostravam-se desinteressantes, a poesia de Wordsworth exerceu forte impacto positivo sobre o seu estado de espírito: “[Dos seus poemas], eu parecia extrair uma fonte de alegria interior; de prazeres compassivos e imaginativos que poderiam ser compartilhados por todos os seres humanos".

Ao estabelecer essas diferenças, portanto, Beardsmore observa que, se existem casos em que não conseguimos identificar um aspecto moral naquilo que aprendemos a partir da literatura, logo existem, também, casos em que poderíamos reconhecer o valor artístico de uma obra literária, ainda que essa envolva uma visão de mundo distorcida e corrupta.

Na tentativa de lidar com mais esse problema, Beardsmore toma por exemplo o comentário do escritor George Orwell sobre o romance “As Viagens de Gulliver” (1726) de Jonathan Swift.

Em um ensaio intitulado “Política versus Literatura” (1946), Orwell faz duras críticas à obra de Swift, afirmando: “Ninguém negaria que ‘Viagens de Gulliver’ é um livro tanto rancoroso como pessimista e que, sobretudo na primeira e na terceira parte, com frequência resvala num tipo de proselitismo político estreito”.

Apesar disso, Orwell ressalva: “Num sentido político e moral, sou contra ele até onde o entendo. No entanto, curiosamente, [Swift] é um dos escritores que admiro com mínimas reservas, e ‘Viagens de Gulliver’, em especial, é um livro do qual me parece impossível cansar”.

Ao introduzir o ensaio de Orwell no seu texto, Beardsmore nos chama a atenção para que: “Uma vez rejeitada a suposição de que a arte deva sempre expressar ideias morais, logo não há razão para continuarmos a negar que uma obra de literatura possua excelência artística apesar de incorporar temas moralmente ultrajantes ou mesmo triviais".

Assim, Beardsmore observa que haveria pelo menos três maneiras de avaliarmos uma obra como “As Viagens de Gulliver”: ela poderia ser considerada excelente apesar da sua perniciosidade, excelente ao mesmo tempo que perniciosa, e, por fim, excelente na sua perniciosidade.

Para Beardsmore, o comentário de Orwell estaria baseado naquele primeiro caso, o que, no entanto, torna as coisas ainda mais complicadas! Pois, ao mesmo tempo que Orwell considera o texto de Swift excelente apesar da sua perniciosidade, ele estaria como que respondendo às provocações morais do escritor. E agora?

O que complica as coisas é saber que, para Beardsmore, o estilo e o conteúdo de uma obra estariam intimamente ligados enquanto, para Orwell, essas duas coisas, embora se cruzassem, não necessariamente dependeriam uma da outra.

Em seu artigo, Beardsmore tenta se afastar do que ele entende ser o posicionamento de Orwell sobre a relação entre estilo e conteúdo, ressaltando, mais uma vez, que nem sempre o conteúdo de uma obra literária possui uma natureza moral.

Segundo Beardsmore, escritores como Orwell estariam defendendo uma noção de estilo meramente formal, ancorada em regras canônicas capazes de apenas nos render explicações sobre a arquitetura de uma obra. Beardsmore caracteriza esse tipo de preocupação com o estilo como sendo trivial, mas será que essa acusação é justa?

Ao tentar diferenciar o seu argumento daquele oferecido por Orwell, o filósofo aparenta desmerecer a importância que o conhecimento das características técnicas de um texto teria em proporcionar ao leitor maior aptidão, seja para compreender a sua mensagem, seja para apreciar aqueles elementos que, não necessariamente, estariam intimamente relacionados com a visão de mundo comunicada pela obra.

O perigo de enfatizarmos a capacidade de aprendermos algo sobre a vida a partir da literatura, como se o texto fosse apenas capaz de comunicar uma experiência vivida, está em operarmos a nossa leitura em detrimento das ferramentas que fazem com que um texto possa ser reconhecido por sua qualidade literária.

Neste ponto, embora a reflexão de Beardsmore remeta-nos a determinados aspectos importantes da nossa experiência enquanto leitores, ainda assim, perde quem, como o filósofo, acha que para apreciar um soneto basta deixar-se contagiar pelas palavras do seu poeta.

Quando, muitas vezes, é somente a partir do conhecimento dos elementos que constituem uma forma literária fixa —como o soneto— que nos tornamos capazes de compreender tanto a natureza da sua mensagem como a amplitude do gênio literário do seu autor.

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