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Segunda onda rosa: uma nova etapa?

Eleições no Brasil, Colômbia e Chile podem confirmar nova onda de esquerda na América Latina

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Fabricio Pereira da Silva

Professor de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), tem pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile)

A eleição de Gabriel Boric no Chile em dezembro de 2021, associada ao que ocorrer nas eleições da Colômbia e do Brasil ao longo de 2022, pode confirmar a ascensão de uma nova "onda rosa" na América Latina.

Essa onda, porém, deve ser entendida como um novo momento e não como um segundo tempo da primeira, o ciclo de governos de esquerda na região durante a década de 2000 e primeira metade de 2010. Ou pior, como a continuação de algo que nem teria chegado a terminar, que teria sido apenas momentaneamente bloqueado.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, em coletiva do lado de fora do antigo prédio da Escola de Mecânica Naval em Buenos Aires, Argentina, em abril de 2022 - Agustin Marcarian/Reuters

Onda rosa 2.0 ou mais do mesmo?

Essa possível segunda onda rosa se debaterá entre o novo e o velho: o novo que está nascendo, o velho que se recusa a morrer. Se apresentará numa conjuntura de longa transição, em direção a um momento histórico distinto daquele que tivemos na virada do século 20 para o 21.

Num contexto de crise orgânica e de diversas transições sobrepostas, projetar uma onda rosa que retome a anterior sem maiores autocríticas e adaptações levará a resultados inferiores em comparação com a primeira onda, e a uma sobrevivência mais curta. Seria propor mais do mesmo, num contexto pior e a partir de sociedades que se transformaram consideravelmente.

Alguns elementos novos poderiam assumir centralidade neste segundo ciclo. Nacionalismos exclusivistas poderiam ser em partes contornados por uma retomada da integração regional e ativação de identidades regionais.

Pode-se refundar instituições de integração que estão dormentes, e buscar estratégias conjuntas para enfrentar questões decisivas como a crise climática, a superação definitiva da pandemia, a circulação de pessoas e fomento de uma cidadania regional, a expansão de direitos, o enfrentamento do extrativismo e redução da dependência epistêmica e tecnológica.

Estatismos exclusivistas também poderiam ser contornados, considerando-se o Estado como um núcleo articulador de questões complexas, e eixo de alianças efetivas entre forças políticas e movimentos sociais.

Esta condensação de demandas através do Estado pode se converter em estratégia para produzir hegemonia, sintetizando demandas fragmentadas derivadas das múltiplas formas de opressão.

O Estado se faz importante também para projetar investimentos em ciência, tecnologia, inovação e educação. Porém, se deveria apostar em versões radicais de democratização, co-governo e repartição de poder, envolvendo este Estado em novas articulações com sujeitos coletivos.

"Modérnicos" versus "pachamâmicos"?

Pode-se pensar em sínteses superadoras do dilema traduzido como "modérnicos" versus "pachamâmicos", que parece atravessar as esquerdas regionais. Este dilema foi traduzido na divisão entre correístas (Andrés Arauz) e indigenistas (Yaku Pérez) nas eleições equatorianas de 2021, que levou à derrota das esquerdas e à eleição de Guillermo Lasso.

Apesar de expressar uma dicotomia simplificadora, o exemplo equatoriano, associado aos debates desatados no interior da intelectualidade crítica, fazem supor que tal tensão entre projetos neodesenvolvimentistas (ou neoextrativistas) e ecologistas-indigenistas efetivamente exista em algum nível.

Mas esta contradição não deveria ser entendida como insuperável. É possível estender pontes, de modo a permitir diálogos e sínteses. Por uma parte, não é mais possível manter-se nos limites do clássico desenvolvimento econômico ocidental, que está levando a humanidade a um beco sem saída. Se pode pensar em desenvolvimentos alternativos, evitando reeditar até o esgotamento estratégias depredadoras da natureza.

No entanto, estas alternativas não podem prescindir de um horizonte pós-capitalista; nem abandonar a luta de classes como elemento fundamental; nem ignorar o papel imprescindível do Estado como indutor e organizador de projetos transformadores.

Mais do mesmo e o fator Boric

Neste sentido, o processo refundador chileno teria algo a contribuir, agregando novos elementos e perspectivas relativas a temas como desenvolvimento, ecologia, crise climática, concepções de progresso, direitos indígenas, reprodutivos e dos imigrantes, feminismo, entre outros temas.

O governo Boric provavelmente se diferenciará de outras experiências regionais, em boa medida reedições do ciclo progressista em versão rebaixada.

Governos como os de Andrés Manuel López Obrador no México, Alberto Fernández na Argentina, e o possível retorno de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, apontam para tentativas de retomar projetos já levados ao limite de suas possibilidades de mudanças sem ruptura, perdendo capacidade mobilizadora.

Outros governos, como os de Nicolás Maduro na Venezuela e de Daniel Ortega na Nicarágua, o primeiro sobrevivente da primeira onda rosa, o segundo vindo de etapa rupturista anterior e reencarnado na onda rosa, se apresentam como degenerações autoritárias de si mesmos.

Consideremos o caso brasileiro para reforçar este ponto. A esperança por um retorno de Lula não se traduz em expectativas por transformações estruturais, mas simplesmente de bloqueio do autoritarismo, violência e desmonte social do governo de direita de Jair Bolsonaro.

Portanto, expectativas rebaixadas em relação aos primeiros governos de Lula, que nunca chegou a propor transformações estruturais. Se antes se podia esperar por reformas e investimentos sociais, agora a expectativa é de que ocorram eleições, que sejam limpas, que Lula tome posse, consiga governar e concluir seu mandato.

Grandes expectativas

Já de Boric pode se esperar mais. Seu governo deverá inaugurar uma nova etapa, a ser consolidada pelo sepultamento da Constituição pinochetista de 1980. Deverá governar em diálogo com os movimentos sociais, as minorias, a juventude, o feminismo. Reconhecer as lutas dos indígenas mapuche do sul do país, tratar humanamente da questão dos imigrantes irregulares, buscar memória e justiça para os crimes da ditadura militar e da repressão ao estallido social.

Trata-se de um projeto inclusivo, com ampliação de direitos para as minorias e expansão do acesso à saúde, educação e previdência. Um projeto que poderia começar a romper com o liberalismo como "modo de vida", estabelecido hegemonicamente na região para além da presença ou não de "progressismos" no poder.

O Chile é exemplar neste sentido. A sociabilidade neoliberal autoritária atravessou os diferentes níveis da vida social, seguindo seu desenvolvimento que se iniciou no pinochetismo, mesmo com democratização formal e durante os governos da Concertação.

Mas o fator decisivo é que o novo governo é tradução institucional de uma revolta popular, complementa o processo constituinte refundador em curso e apoiará a regulamentação e institucionalização das mudanças que serão inscritas na nova Carta.

Representa também uma nova geração que emerge. Sai a geração de "1968", dos jovens quadros do governo de Salvador Allende, já não tão jovens durante a transição pactuada e os governos consertacionistas. Entram em cena os meninos da "revolução dos pinguins" de 2006 e da revolta estudantil de 2011 e 2012.

O governo de Boric pode se apresentar então como novidade, em meio a retomadas rebaixadas em contextos deteriorados de projetos de duas décadas atrás. Não se trata de uma alternativa ao capitalismo. Mas envolve altas expectativas.

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