Leandro Narloch

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, entre outros.

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Leandro Narloch

Problematizadores compulsivos

Eles tentam nos convencer que traços comuns do dia a dia são malignos e reprováveis

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Golfe, suítes máster, jogo de xadrez, "O Senhor dos Anéis", matemática, ciclismo, zona rural, música clássica, corrida esportiva, rock, tranças no cabelo, fazer contato visual, não fazer contato visual, criado-mudo, fantasias de enfermeira, poluição do ar, estátuas de Abraham Lincoln, pronomes, a filosofia ocidental.

O leitor deve achar que resolvi preencher a coluna com palavras aleatórias, mas há algo em comum nas coisas e ações acima. Todas elas foram consideradas discriminatórias em reportagens ou artigos de TV e de grandes jornais estrangeiros.

Afirmei na semana passada que o exibicionismo moral leva pessoas a imaginar ou exagerar episódios de opressão. Quem detecta injustiças que escapam ao radar dos outros ganha uma aura de sofisticação moral, eleva seu status no grupo moralmente respeitável.

Isso ajudou a criar uma epidemia de problematização. As redes sociais estão cheias de gente obcecada em nos convencer de que traços comuns do dia a dia são na verdade malignos e reprováveis, pois esconderiam machismo, racismo, transfobia, homofobia e heteronormatividade estruturais.

Só nesta semana, problematizaram o hábito de chamar mulheres pelo primeiro nome, as fantasias de enfermeira, a reação de celebridades à morte da cantora.

Problematizaram os homens que se vestem de mulher no Carnaval, palavras e expressões do português, o nome de times da NBA, a Black Friday.

Problematizam tanto os casais jovens que se mudam para bairros pobres ("gentrificação") quanto as famílias brancas que vão embora de bairros negros ("white flight").

Problematizam quem adere à cultura americana ("americanismo") e também quem adota elementos de culturas discriminadas ("apropriação cultural").

Uma amiga tem certa razão quando diz, com um tremendo sotaque de colonos do sudoeste do Paraná, que essa mania é resultado da "falta de lote pra carpir".

Até o século 18, mais de 70% das pessoas trabalhavam no campo. Sem tratores ou fertilizantes, muita gente precisava trabalhar duro para produzir poucos alimentos. Só ricos, nobres e seus protegidos tinham tempo para problematizar.

Hoje, na Europa, as lavouras empregam menos de 5% da força de trabalho. Por aqui, 10% dos brasileiros conseguem produzir comida para quase quatro vezes a população do país.

O avanço espetacular da produtividade agrícola permitiu que milhões de pessoas largassem a enxada.

Hoje seus netos podem se dedicar a trabalhos criativos e intelectuais. Muitos deles, no entanto, usam toda essa prosperidade para quê? Para passar o dia problematizando e fiscalizando o comportamento alheio na internet.

No final do livro "The Madness of Crowds", Douglas Murray cria uma inversão interessante. No passado, diz ele, quando quase todos eram vítimas de doenças, da miséria ou de preconceitos, a vitimização não rendia vantagens sociais.

Hoje, "a abundância de relatos de vitimização e injustiças, em vez de mostrar um excesso de opressão na sociedade, revela na verdade a escassez dela". Vivemos uma época com tão pouca opressão que nos damos ao luxo de passar o dia tentando enxergar opressão em pronomes, fantasias e cortes de cabelo.

Isso significa que injustiças e discriminações não existem? Não. Existem e muitas são graves. Por isso mesmo não precisamos perder tempo com opressões imaginárias.

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