Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Novo livro sobre Trump satisfaz voyeurismo e leva a reflexão sobre o jornalismo

Obra parece querer absolver autores que, ao escrever o primeiro rascunho da história, colocam monstros em olimpos

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"Herr Hitler em casa nas nuvens". Esta era a manchete da reportagem publicada na revista do New York Times no dia 20 de agosto de 1939. Em estilo típico de jornalismo de lazer dominical, o texto dizia: "No alto de sua montanha favorita, ele encontra tempo para política, solidão e frequentes festas oficiais".

Isso nove meses depois da Noite dos Cristais, cinco depois da ocupação nazista da Tchecoslováquia e três depois do Pacto de Aço com a Itália de Benito Mussolini.

A Presidência de Donald Trump não promoveu, é claro, o extermínio de 6 milhões de judeus nem começou uma guerra mundial. Mas a passagem do republicano pela Casa Branca acolheu neonazistas, separou famílias de imigrantes de suas crianças —presas em jaulas—, baniu muçulmanos, culminou com uma violenta tentativa de golpe e foi decisiva para colocar os Estados Unidos numa trajetória autocrática.

O ex-presidente Donald Trump em evento de campanha de candidatos republicanos em Michigan - Emily Elconin - 1º.out.22/Getty Images/AFP

A manchete do Times sobre a idílica residência campestre de Adolf Hitler me ocorreu enquanto lia o mais novo da longa lista de best-sellers sobre o ex-presidente.

A autora, Maggie Haberman, é repórter do New York Times e teve vasto acesso ao empresário nova-iorquino nas últimas duas décadas, em passagens pelos tabloides New York Post e Daily News e, mais tarde, pelo site Politico. Tinha, portanto, familiaridade com o homem que já era visto como um playboy cafajeste.

Quando o republicano se elegeu, Haberman, que emplacava furo atrás de furo, foi apelidada de "Trump whisperer" —referência a treinadores que se entendem com animais em sussurros.

Seu livro "Confidence Man: The Making of Donald Trump and the Breaking of America" (vigarista: a criação de Donald Trump e a fratura da América) é recheado de revelações que vão de anedotas de banheiro à pressão por aventuras militares, como bombardear o México para neutralizar laboratórios de traficantes de drogas.

Trump chegou a pedir que a repórter noticiasse antes sua pré-candidatura, em junho de 2015, quando ela, recém-contratada no Times, não era destaque do jornalismo político. Haberman não especula sobre o motivo disso, apenas atribui seu acesso à obsessão de Trump com o jornal.

O republicano exibe quase dependência química de atenção da mídia e deu entrevistas a inúmeros jornalistas que documentaram em livros sua Presidência catastrófica. Mas é peculiar a fixação dele em Maggie, que nesta semana xingou de "maggot" (verme).

Em entrevistas, a jornalista tem ensaiado alguma autocrítica sobre como a mídia americana não estava preparada para um renegado que transformava cada escândalo em oportunidade de atenção. No entanto, uma releitura de suas reportagens sugere que Haberman não atraiu à toa o epíteto de "estenógrafa da corte" dado por críticos.

No livro, ela descreve Trump como homofóbico, quando antes o qualificava de tolerante a gays; relata agora episódios de racismo, quando, no passado, sugeriu que Trump era o oposto, por ter namorado uma modelo de ascendência birracial de pela clara; após o escândalo da gravação em que Trump se gabou de ataques sexuais e de agarrar mulheres "pela vagina", Haberman publicou um untuoso relato descrevendo um candidato triste e isolado na alta cobertura da Trump Tower —ou seja, ele como vítima.

"Confidence Man" é uma lista de revelações que podem satisfazer o voyeurismo. Se apenas confirma o Trump já conhecido, parece querer absolver autores que, ao escrever o primeiro rascunho da história, colocam monstros em olimpos.

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