Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Teria sido a pré-história mais libertária do que a nossa modernidade?

Livro 'The Dawn of Everything' sintetiza formas de liberdade praticadas no período por muitas culturas

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Seria possível partir de achados da pré-história e sustentarmos propósitos como o do evento do início deste século conhecido como Occupy Wall Street? Viver assim seria viável para o Homo sapiens hoje?

O livro "The Dawn of Everything, A New History of Humanity", ou o alvorecer de tudo, uma nova história da humanidade, escrito a quatro mãos por David Graeber —morto precocemente em 2020 com 59 anos— e David Wengrow, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, é uma obra magistral para os amantes da pré-história e da história e do que podemos aprender com elas. Mas a militância dos autores querendo provar que a pré-história sustenta a plataforma política da esquerda do partido democrata americano põe em risco a leitura.

Título: A pré-história do Occupy Wall Street. A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica mista, com pastel seco sobre papel e desenho digital, técnica vetor. A imagem, no formato horizontal mostra um Touro estilizado em cor chapada preta. Ao fundo, imagens de pintura rupestre, em pastel seco, sobre papel craft, com imagens de primitivos na caça de animais e marcas de mãos das cavernas sobre o touro. Há uma tarja cor chapada vermelha ocupando quase 1/3 na base da ilustração. E, ao centro, na base, sobre o touro, há duas figuras iguais humanas estilizadas, em cor branco chapado, ambas segurando bandeiras em posição de protesto.
Ricardo Cammarota

A obra se alimenta de achados recentes para pôr em questão interpretações comuns de que a história da espécie seria uma linha reta que nos levaria, necessariamente, de ancestrais violentos à violência do mundo dos ricos de hoje em dia.

Tal interpretação linear e fechada, aparentemente, justificaria de forma pretensamente científica que a humanidade sempre teve, e só tem, um caminho a seguir: a violência produtora de desigualdade e os interesses egoístas como matriz de onde emergiriam as formas sociais e políticas.

Vale dizer que estudos sobre a pré-história das religiões reforçam em grande medida o impacto que as práticas violentas tiveram em nosso imaginário espiritual —sacrifícios de humanos e animais e culto de espíritos malignos poderosos. Não são amadores os investigadores que discutem tais temas torturantes nem trabalha para bancos o 1% dos bilionários do mundo.

Outras obras importantes já levantaram questões semelhantes que buscam relativizar a interpretação linear da eterna violência necessária de nossa ancestralidade.

Investigadores como Alain Testart e seu "L’Amazone et la Cuisinière, Anthropologie de la Division Sexuelle du Travail", ou a amazona e a cozinheira, antropologia da divisão sexual do trabalho, ou investigadoras como Marylène Patou-Mathis e seu "Préhistoire de la Violence et de la Guerre", ou pré-história da violência e da guerra, investem em questionar uma pré-história dominada pelo terror como moto-contínuo.

Ambos os investigadores põem em cena a figura feminina não apenas como o clichê clássico da mulher pré-histórica como objeto ou serviçal.

Para alguém familiarizado com a fortuna crítica que trata da pré-história é comum saber que os dados caducam à medida que a lenta arqueologia avança. Graeber e Wendrow caminham por achados importantes até então.

O coração da tese dos autores é que povos ancestrais foram capazes de desenvolver formas sociais muito próximas ao que poderíamos chamar de liberdade. Formas sociais que não eram escravas da lógica produtiva. Povos que experimentavam formas de vida desburocratizadas, assim como reis que na verdade não mandavam nada.

Dois homens com camisa e calça de pé
O arqueólogo britânico David Wengrow (esq.) e antropólogo americano David Graeber, autores de 'O Despertar de Tudo' - Kalpesh Lathigra/Divulgação

São as seguintes formas de liberdade sintetizadas pelos autores como praticadas na pré-história por muitas culturas, presumivelmente: 1) A liberdade de ir embora e se instalar longe do grupo originário. 2) A liberdade de desobedecer ou ignorar ordens de terceiros. 3) A liberdade de criar formas completamente novas de vida social e de ir e vir entre elas.

Daí parte a hipótese de que a pluralidade de formas sociais ancestrais poderia dar suporte a movimentos como Occupy Wall Street. Nosso passado pré-histórico teria sido, na verdade, mais libertário do que a nossa modernidade capitalista amante da burocracia, da violência e do dinheiro.

A dúvida é: como uma humanidade atual, com 7 bilhões de pessoas querendo ser feliz comprando lixo, imersa em contenciosos jurídicos e políticos, cercada por uma burocracia de gestão de multidões, viciada no ethos do marketing digital, conseguiria se assemelhar a esses ancestrais supostamente libertários e esparsos? Nenhuma das três liberdades descritas aqui poderia ser posta em prática hoje sem muita violência, devastação e autoritarismo.

A pergunta que os autores nos legam é a de sempre, representada em mitos religiosos. Se nossa pré-história era mais rica em beleza política e social, por que, afinal, estamos nesse impasse há milênios?

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