Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Os modernos sofrem de orgulho desmedido

O princípio da vontade livre do indivíduo penetrou profundamente no imaginário do mundo moderno

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O pensamento liberal identificado por figuras importantes como John Locke comete um erro crasso: aposta as fichas na ideia de que o nascimento da sociedade se deu por escolha livre das pessoas a fim de proteger suas vidas, seus negócios e suas propriedades. É possível duvidar dessa premissa?

 equívoco liberal  A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pincel em tinta nanquim, com simples traços soltos, aguados e estilizados.  A ilustração, na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, apresenta multidão de pessoas, como se estivessem em um show ou protesto, algumas com braços para cima, outras, com celulares nas mãos.
Ricardo Cammarota - Folhapress

Não precisamos ser descendentes de J.J. Rousseau para discordar dessa premissa. Colocar a discordância na ideia de que defender propriedades privadas é um equívoco de princípio porque seria um pressuposto tipicamente da burguesia britânica desde então não é o coração do problema.

Rousseau também participa da ideia da escolha autônoma dos sujeitos como princípio do chamado contrato social, ainda que reconheça a corrupção da vontade livre dos sujeitos uma vez que o homem natural foi perdido. No entanto, ele acreditava na capacidade da vontade livre e geral de refazer a sociedade a partir de um contrato social mais justo.

Mesmo Thomas Hobbes, conhecido por ser defensor do absolutismo –um equívoco acerca do seu pensamento–, nunca defendeu a teoria do corpo "místico do Rei" –o rei é rei porque Deus quer que seja– mas, sim, que o Estado era fruto de um contrato livre entre as pessoas a fim de garantir a organização da violência e, assim, diminuir a condição da vida como breve, bruta, infeliz. Essa escolha racional, digamos, levaria a famosa concepção de que o Estado detém o monopólio legítimo da violência.

Todos os três acima citados se encontram na noção de que haveria um contrato social mítico, digo eu, como fundamento da vida em sociedade e da atribuição do poder político. Esse mito está sustentado na ideia vaga de que os seres humanos são os fundadores livres da ordem social e política e, portanto, podem mudá-la, melhorá-la, rompê-la, na sua totalidade ou em parte, na medida de suas decisões individuais ou coletivas.

Portanto, o princípio da vontade livre do indivíduo como átomo social está presente em todos. Esse princípio penetrou profundamente no imaginário moral, político e econômico do mundo moderno tal como conhecemos. Capitalistas ou comunistas, todos creem nessa mítica da decisão livre.

Não se trata de ir até Santo Agostinho para negar a existência do livre arbítrio, podemos ficar nos limites da discussão política moderna e, ainda assim, por em dúvida esse princípio liberal da vontade livre como fundamento da sociedade.

Posso aceitar que, por exemplo, o sexo deva ser consensual, na medida em que pessoas adultas "decidem" se querem transar uma com a outra ou outras. Em casos como esse, é óbvio a validade do princípio da escolha livre. No entanto, há toda uma gama de temas que põem em dúvida a escolha livre e racional: o inconsciente, limites econômicos, saúde, emoções e afins.

Mas, com relação a fundação da vida em sociedade, suspeito que esse indivíduo livre do mito do contrato social não existe. Nunca existiu e continua não existindo como fundamento da vida social.

Concordo mais com Edmund Burke, para quem a sociedade evoluiu de pequenos grupos imersos em hábitos imemoriais, crenças religiosas, laços de bando e clã, e que lida com formas grandes de sofrimentos, o "pelotãozinhos", "little platoons", como ele costumava dizer. O próprio crescimento da sociedade impõe problemas para a operação humana no cotidiano. Como decidir, como escolher, até que ponto sei exatamente o que quero quando digo que quero?

A simples ideia de que nascemos livres, bons ou maus, já é pura especulação. O problema com posições como a de Burke é que ela parece por limites a ação racional e consciente do ser humano que fere o orgulho político desmedido dos modernos.

O autor israelense contemporâneo Yoram Hazony vai na mesma linha do Burke. Concorde ou não com sua defesa da ideia de nação contra a ideia de conglomerados imperiais, como a comunidade europeia, sua defesa de que a sociedade evoluiu organicamente e aos trancos e barrancos de grupos menores até hoje me parece bem mais real do que esse sujeito liberal que só se move bem no shopping.

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