Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

O livro proibido de Jair Bolsonaro

Ao ver no amor um ato de domínio, o extremismo não aceita a educação sexual

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

É preciso seguir o combinado, e os apresentadores do Jornal Nacional não tiveram alternativa durante a entrevista que fizeram com Jair Bolsonaro.

O candidato do PSL queria exibir às câmeras o conteúdo de um livro que, a seu ver, não poderia de modo nenhum ser visto por crianças. Avisou aos espectadores do programa que deveriam tirar os filhos da sala.

"Aparelho Sexual e Cia.", da francesa Hélène Bruller, com ilustrações de Zep (Companhia das Letras), seria uma daquelas cartilhas que, a exemplo do famoso "kit gay", terminariam destruindo as bases da família tradicional e estimulando meninos e meninas de seis anos a graves sem-vergonhices.

As regras da entrevista impediam o candidato de mostrar textos e documentos supostamente "provando" o que ele diz, e assim o livro ficou sem ser visto. Como em toda pornografia e em toda paranoia, a imaginação do espectador termina certamente produzindo fantasmas, sonhos e ameaças mais intensas do que a verdade dos fatos.

Claro que a capacidade de se chocar com coisas de sexo varia conforme a cabeça de cada um.

Muitas ilustrações podem ser impactantes para quem mal sabe como nascem os bebês. Mesmo adultos podem se assustar com cenas de parto.

Eu também não acharia adequado se, num livro para crianças de nove anos, fosse ensinada a conveniência de se usar lubrificante para a prática do sexo anal.

Pensando bem, por que não? Minha resposta seria vaga: "Aí também é demais". Mas deixo o assunto de lado.

Por sorte, eu tinha o livro "Aparelho Sexual e Cia." em casa, e resolvi dar uma olhada. Assustei-me, não com o livro, mas sim com a mentalidade de Bolsonaro.

Por mais que eu tivesse horror às suas opiniões, não pensava que fosse tão extremo o seu conservadorismo em matéria sexual.

Eu lia e relia. "Mas isso não tem nada de mais!" O texto trata bem pouco de homoafetividade. Eis o que aparece na página 19: "Alguns meninos sentem desejo por outros meninos. Às vezes, quando crescem, podem até passar a preferir as moças, e outros que preferiam meninas podem mudar de ideia também".

"E o que é normal?", prossegue Hélène Bruller. "Todo mundo se faz esse tipo de pergunta e, com o tempo, encontra a resposta. Ouça seu coração e acabará descobrindo se é heterossexual (um menino que prefere as meninas, e vice-versa) ou homossexual (um menino que prefere os meninos ou uma menina que prefere as meninas)."

Claramente, o livro não está estimulando ninguém a nada. Nem mesmo, se olharmos bem, está dizendo que homossexualidade é "normal". Entrega a resposta à reflexão futura do pequeno leitor.

Continuo procurando o que possa ser mais chocante. Talvez a passagem sobre beijo na boca. "O objetivo é acariciar a língua dela com a sua. Depois, vocês giram a língua de lá pra cá, assim elas brincam um pouco. E, então, é só improvisar."

Reconheço: para meus padrões pelo menos, a passagem vai além do necessário. O livro é basicamente explicativo; não era para ser um manual de instruções.

Textos curtos sobre camisinha ou gravidez adotam um foco mais distante, na "terceira pessoa", apenas com o propósito de não deixar a criança "boiando" quando ouve menções ao assunto.

Traindo o próprio embaraço dos autores (e todo mundo, liberal ou não, fica sem jeito com crianças nessa hora), as ilustrações buscam fazer humor, mas acabam sendo um pouco toscas. Não "safadas", mas bobonas, e mais "para meninos" do que "para meninas".

No fim, acabei ficando com pena de Bolsonaro, como tenho de todo puritano sexual. Quantos medos inúteis! Quanta insegurança, quanto pecado, quanta impossibilidade de ver no relacionamento físico um ato de comunicação, de amor e de respeito...

O problema talvez nem seja com as crianças.

Claro que elas não podem "ver tudo" e "fazer tudo". Mas a reação conservadora nasce, a meu ver, quando livros desse tipo tentam ensinar, não o beijo de língua ou o sexo anal, mas uma coisa bem mais simples. A de que, em questões de sexo, todo mundo é sujeito, e não objeto.

O machista apalpa mulheres, comenta peitos e bundas, acha certo ensinar sexo ao filho adolescente levando-o a casas de prostituição. Aí ele não é "moralista". É porque desconsidera, no sexo, o que pode superar a relação de domínio sobre um objeto.

Não é contraditório com isso a rejeição do conservador à pedofilia. O objeto-criança é proibido. Mas depois de crescida, sim, a menina pode virar objeto à vontade, e se for estuprada, é porque pediu. Fez-se a mágica: eis que o conservador vira liberal.

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