Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Arfar penoso de barro, cinza e sangue

Outra tragédia no centenário do poeta de Mariana, Alphonsus de Guimaraens Filho

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Recebo o último número do Suplemento Literário de Minas Gerais, publicação que desde 1966 sobrevive às oscilações da política cultural do estado.

Com uma ótima seleção de poemas e artigos, celebra-se o centenário de Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008).Nascido em Mariana, Minas Gerais, o poeta pertencia a uma família de grandes escritores mineiros.

Ele era sobrinho do autor de “A Escrava Isaura”, Bernardo Guimarães (1825-1884); seu pai, Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), marcou presença no simbolismo, e seu irmão, João Alphonsus (1901-1944), tem contos em qualquer antologia.

 
André Stefanini

Sem ter pertencido ao primeiro plano do modernismo, Guimaraens Filho foi amigo de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Emilio Moura, Manuel Bandeira e Mario de Andrade.

As cartas que recebeu destes dois últimos foram reunidas em “Itinerários” (ed. Duas Cidades, 1974).

Sempre tão disposto à confidência íntima quanto ao conselho magistral, Mario de Andrade se preocupava com a inclinação de Guimaraens Filho a imitar-se a si mesmo.

É que, entre a herança do pai e a crispação moderna, o poeta precisava marcar com força a sua identidade, caindo talvez no repetitivo.

Manteve, de Guimaraens pai, a voz melodiosa, um alto e constante domínio técnico e o imaginário um tanto vago —para o que contribui, certamente, a fé católica. Por vezes, estamos naquele mundo de imensidões e eternidades em que se pasmava o Vinicius de Moraes da primeira fase.

O poeta louva, assim, a “Presença que é milagre/ e é cântico”; mas a alma, ao buscá-la, é “como sombra remota que se apega/ à sua própria imagem e em cinza escura/ se deixa submergir; como a da cega/ visão interior que transfigura/ a visão da morte...”

A atenção —minha atenção, pelo menos— se perde nesse vocabulário. Entro, para citar mais um verso de “O Irmão” (1950), na “algidez da noite impenetrável”.

A busca da simplicidade, por outro lado, não se livra da forte influência de Carlos Drummond: “vim só, trouxe somente este corpo marcado pelo mundo”, diz Guimaraens Filho, lembrando o poeta itabirano.
Mas Alphonsus de Guimaraens Filho é sobretudo um poeta de Mariana —cidade triste como poucas.

Visitei Mariana uns 40 anos antes da tragédia na barragem da Samarco, num dia chuvoso, e fiquei com a impressão de um lugar desolado, na névoa.

Ao contrário de Ouro Preto, ali perto, onde as igrejas parecem cercadas de gente, nas 
casinhas e casarões apertados em volta, em Mariana a catedral fica em frente a uma praça quadrada e grande; parece mais solitária, pobre e reta.

A praça, pelo que me lembro, dormia num lugar muito alto, sem as distrações que permite a topografia movimentada de Ouro Preto.

E se em Drummond existe a imagem recorrente do ferro, em Alphonsus de Guimaraens Filho —profeticamente— é o barro que conta.

A morte, num poema, chega sem aviso junto à “moça do barranco”.

Dos próprios versos, o autor diz: “Não de vento os formei, mas do meu barro./ Não lhes dei sentimento, mas meu sangue./ Acolhe-os, pois, ainda que sejam turvo/ rio a cruzar as terras que erigiste/ no teu sonho maior, mesmo que sejam/ somente um vago eco, um arfar penoso/ de barro, solidão, de cinza e sangue”.

Sobre a cidade, também vale citar um poema inteiro do autor. “É como um grande soluço:/ Mariana./ São velhas casas pedindo/ um pouco de amanhecer./ São velhas casas sonhando.../ São velhas casas sonhando.../ Parece que vão morrer./ É como um grande soluço: Mariana”.

Guimaraens Filho continua, falando consigo mesmo.

“Navegas por entre luzes/ que te recordam, na sombra/ dos teus olhos,/ um passado dolorido,/ um passado que não viste/ e que entretanto é bem teu./ Carregas na carne aflita/ uma carne que morreu./ E é como um grande soluço/ de mil torres,/ de paisagens exaustas,/ um soluço/ sufocado:/ Mariana.”

Depois da Samarco, temos agora Brumadinho. Também estive lá, há menos tempo. A cidade era ainda precária, sem história, inadaptada ao turismo de Inhotim.

Aquele admirável parque de arte contemporânea involuntariamente imita um condomínio privado, com mansões para cada artista, enquanto a modesta Brumadinho, como o nome indica, se arrasta, em poucas casas, entre vales, pela névoa.

Não, na névoa não. Arrasta-se, como em Mariana, numa massa de barro, de burrice e de desprezo pelos homens.

Tudo está, como disse o poeta, sufocado até a morte.

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