Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

'O Farol' é maior do que seus enigmas

No filme de Robert Eggers, uma luz terrível vem apenas trazer sombra e desrazão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cada geração tem o seu “filme-problema”. Para a minha, foi “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Passei horas discutindo o que significava tudo aquilo. O monólito, o feto flutuante, a música do Zaratustra.

Com 15 ou 16 anos, acabei elaborando uma “interpretação”. Hoje me envergonho um bocado. Não só porque era pretensiosa; tenho mais vergonha é da seriedade com que encarei o filme.

“Uma Odisseia no Espaço” continua ótimo, é claro. Mas no fundo, o filme de Kubrick é um daqueles casos em que a obra supera o seu significado —seja lá qual for. A descoberta de uma “solução” diminui, às vezes, o valor estético da coisa. “Ué, era só isso?” A chave funciona, mas dá acesso a um cofre sem toda a riqueza que imaginávamos.

Mais tarde, outros filmes do mesmo gênero deram trabalho a seus jovens intérpretes. O russo Andrei Tarkovski fez furor com “Stalker” (1979) —mas eu já estava meio vacinado.

Foi uma década de filmes enigmáticos. “Coração de Cristal”, de Werner Herzog, e “A Estratégia da Aranha”, de Bertolucci, me deixaram moderadamente inquieto, mas eu já tinha decidido que não tinha muita paciência para entender.

Ilustração abstrata com fundo preto e raios brancos saindo do centro, acima da imagem.
André Stefanini/Folhapress

Minha justificativa para a preguiça era a de que esse tipo de obra se levava excessivamente a sério. A simbologia pesada, o grotesco de algumas cenas e a absoluta falta de fluência narrativa passavam por profundidade vanguardista.

Acontece que eu mesmo deixara de me levar excessivamente a sério; já tinha deixado de ser o jovem que procurava no “super-homem” de Nietzsche a explicação para os macacos de Kubrick.

A explicação, por melhor que seja, não justifica a obra. Ainda mais quando se trata de cinema, uma arte que a meu ver não se presta tanto à concentração de subtextos e entrelinhas.

Um texto de Jorge Luis Borges ou de Kafka tem outro poder de hipnotismo. Esses autores escrevem contos que são como charadas. Só que, resolvidas ou não, o mistério permanece. 

Esses autores criam um clima, um ambiente e mesmo um mundo (um modo de ver o mundo) maiores do que as alegorias ou paradoxos individuais que se apresentam ao leitor.

E não existe nada mais simples, despojado, “básico”, do que uma peça como “Esperando Godot”, de Beckett.

Nenhum acúmulo de detalhes bizarros —a gigantesca ave dançarina de Werner Herzog, o balde cheio de enguias nojentas em “O Tambor”, de Volker Schlöndorff.

Os dois maltrapilhos de Beckett estão, sem dúvida, se confrontando com a ausência de Deus, que falta eternamente ao encontro na beira da estrada. Acontece que a peça é “só isso”, e ao mesmo tempo “mais que isso” —e daí resulta, acho, seu valor como obra de arte.

Escrevo tudo isso a propósito de “O Farol”, filme dirigido por Robert Eggers.

Trata-se de um “filme-enigma”, certamente. Referências se cruzam: o mito de Prometeu, condenado a ter uma ave devorando seu fígado por ter roubado o fogo dos deuses. A  “Balada do Velho Marinheiro”, de Coleridge, em desgraça por ter matado um albatroz. E, como ameaça, “Os Pássaros”, de Hitchcock

O próprio “Esperando Godot” parece presente: também aqui temos a situação em que dois pobres 
coitados, vítimas de um mundo que não controlam, descontam sua raiva num jogo de opressão e violência mútua.

Sempre otimista, mas nunca absurdo, Voltaire dizia que o trabalho é capaz de derrotar três grandes inimigos do ser humano —a pobreza, o tédio e o vício.

Na primeira parte de “O Farol”, o isolamento dos dois personagens no inverno de uma ilha no fim do mundo é preenchido pelo trabalho —dos mais ingratos e brutais, em fins do século 19.

A história mostra o que acontece quando o trabalho desaparece. Primeiro, o vício (a forma de uma garrafa é a mesma de um farol). Depois, mais que o tédio, é a loucura que toma conta. 

Há uma tempestade que não passa nunca: seria esse o símbolo do desemprego permanente depois de 12 anos de crise econômica?

A simbologia de “O Farol” está perto do exagero em algumas cenas, mas a demência do personagem vivido por Robert Pattinson lhe dá um bom contexto. 

A tensão, o horror, a variedade emocional e a coerência visual de “O Farol” fazem do filme algo maior do que os enigmas que propõe.

Ele se levanta, com sua reta e áspera superfície, no meio de uma bruma em preto e branco; emite uma luz terrível —aquela que, em vez de esclarecer, torna apenas mais vivas as sombras à nossa volta.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.