Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu Filmes mostra de cinema

'Alvorada' exibe os lados extraordinário e implicante de Dilma Rousseff

Documentário do É Tudo Verdade mostra os últimos dias da presidente no governo e a grandiosidade do palácio

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Eis uma frase bonita, e eu gostaria de acreditar nela: “Somos muito frágeis para ser absolutamente maus”.

Quem disse isso foi Dilma Rousseff, enquanto aguardava o julgamento do seu impeachment no Senado, numa curta conversa com Anna Muylaert e Lô Politi. São as diretoras do filme “Alvorada”, a ser exibido nesta semana no festival É Tudo Verdade. O acesso é grátis, pela plataforma Looke. (Veja a programação completa no site do evento.)

O documentário acompanha os últimos dias de Dilma, já com Michel Temer ocupando a Presidência. Ela parece confinada na residência oficial, que curiosamente parece ser, no filme, uma personagem tão ou mais importante do que a própria Dilma.

O Palácio da Alvorada surge em ângulos inusitados. Pela manhã, uma equipe de trabalhadores —acho que uns dez, no mínimo— corta a grama do jardim. A bandeira é hasteada pelos Dragões da Independência: um pelotãozinho de soldados de chumbo, a bem dizer meio desconjuntado, com crinas de cavalo preto no capacete.

Surge um problema: fungos no espelho d’água da fachada. O administrador do Alvorada examina, pondera, resolve a questão. Os filtros estão entupidos; é preciso substituir toneladas —eu disse toneladas— da areia que fica dentro deles.

A classe trabalhadora intervém mais uma vez: um homem se encarrega de chupar —como se costuma fazer com o tanque de gasolina— o cano da água suja, engolindo um bom bocado.

Num saguão vazio, entram dois urubus. Também há um funcionário para enxotá-los dali.

Urubus? Seriam Temer e Eduardo Cunha? Acho que explorar uma eventual simbologia dessas cenas não nos levaria muito longe. Afinal, a ideia de que as águas do Alvorada precisavam de limpeza poderia ser interpretada de modo inverso: era a sujeira do PT indo embora.

Não: a máquina do Alvorada aparece em toda sua pompa e em toda sua banalidade. Na enorme cozinha, uma meia dúzia de homens se apressa; apinhadas numa salinha, subsecretárias imprimem listas com os participantes de cada evento. Haverá cadeiras para todos?

Vemos as diversas entradas de serviço, a garagem subterrânea onde um ministro estaciona a bicicleta. Dilma aparece no fundo de um corredor: “Cadê Fulano?”. “Está chegando”, responde alguém em voz alta, sem se levantar da mesa.

Ao mesmo tempo, tudo é grandioso, aerodinâmico e vazio. Quem vê o Palácio da Alvorada de longe se engana pelas linhas horizontais do edifício. Um faxineiro, afastando a cortina para limpar os vidros do primeiro andar, parece minúsculo; o pé-direito tem umas dez vezes a sua altura.

ilustração mostra pessoa andando pelo corredor do palácio da Alvorada, em Brasília
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 14 de abril de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Para voltar a um assunto da moda nestes dias, toda essa atenção às entranhas do Alvorada parece reforçar a ideia de que “as instituições estão funcionando”. A crise não era pequena em agosto de 2016, mas a grama continuava sendo cortada e a equipe de limpeza fazia o seu serviço.

Talvez a vida nos palácios traga essa espécie de tranquilidade, ou pelo menos dê uma sensação de segurança.

O extraordinário em Dilma Rousseff, pelo que vi no documentário, é que sua força ia muito além disso. Sua “normalidade” nada tinha de apático. Ela diz às entrevistadoras que é incapaz de se deprimir, de ficar desanimada. Mesmo na prisão, conta, não se abalou.

Ao mesmo tempo, vê-se seu lado detalhista, implicante, talvez pouco “político”, no sentido de quem intui o quadro geral das coisas. Era, sem dúvida, uma espécie de engenheira.

Não acreditar no mal? Entendo o sentido, muito bonito, do que ela diz sobre a fragilidade das pessoas. Mas como entender, de quem já sofreu tortura física, uma visão tão serena?

Dilma citou a filósofa Hannah Arendt, que escreveu sobre a “banalidade do mal”. Eduardo Cunha, diz a presidente, “é banal”. Sim, e não exatamente uma encarnação do mal. Mas o fato de haver um mal banalizado não quer dizer que o mal não exista, e que não exista absolutamente.

Raras vezes existirá num indivíduo particular. Bolsonaro tem uma personalidade violenta, destrutiva, delirante. Não diria que é totalmente mau.

Mas não consigo ver, nele e em seus acólitos, a presença apenas de interesses econômicos e políticos concretos (talvez a teoria marxista, paradoxalmente, possa desculpá-los com essa interpretação). Vejo, sim, a presença do mal —essa alegria no desamor, essa embriaguez de morticínio, essa preferência sistemática pela treva e pela estupidez.

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