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Orson Welles viveu saga digna de Shakespeare esnobado por Hollywood

Cineasta genial que assumiu performance de 'artista em tempo integral' volta à tona com 'A Jangada de Welles'

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Paulo Santos Lima

Crítico, professor de cinema e curador das mostras "Easy Riders - O Cinema da Nova Hollywood" e "O Cinema Francês Pós-Nouvelle Vague"

Voltado sobretudo aos jangadeiros cearenses que foram a presença mais marcante nas imagens de "É Tudo Verdade" —o conturbado projeto que trouxe Orson Welles cá às nossas terras—, o ótimo "A Jangada de Welles" acaba, num efeito bumerangue, voltando a esse que é o maior gênio do cinema americano. E a pergunta urgente que jamais deveria estar calada é onde, afinal, estará Orson Welles neste século 21.

O centênio passado nem foi de águas muitos tranquilas para o artista. Pelo menos, não depois de 1942. Até ali, o mundo havia assistido a um precoce gênio pintando uma Capela Sistina nos campos do teatro, do rádio e do cinema. Em 1936, aos 20 anos, ele lançou uma revolucionária montagem teatral de "Macbeth" ambientada no Haiti e com atores negros, algo impensável naquele tempo.

Dois anos depois, causaria pânico coletivo ao narrar pelo rádio —e com especial autenticidade— uma invasão marciana dos Estados Unidos, trecho de "A Guerra dos Mundos" de H.G. Wells. É bom lembrar que ali estava, bem antes da atual era da pós-verdade, um exemplo ancestral do que hoje chamamos de fake news.

O cineasta Orson Welles, que viveu entre 1915 e 1985 - Reprodução

Os feitos artísticos no teatro e no rádio renderam a Welles um convite da RKO para realizar um filme com total liberdade criativa —o que era, senão absurdo, bem incomum a um iniciante em Hollywood. Nascia "Cidadão Kane", incompreendido em seu lançamento, em 1941, mas depois considerado um dos maiores filmes de todos os tempos.

A radicalidade de "Cidadão Kane" estava na monumentalidade de sua narrativa, que não era só ambígua, mas sobretudo não se fechava, como um quebra-cabeça incompleto. O filme era um denso drama biográfico que trazia em si algo da vanguarda europeia dos anos 1920, cinejornal, múltiplos flashbacks, humor, discurso indireto livre da literatura moderna, estética noir e, bem típico do cineasta, procedimentos de câmera olímpicos.

Essa "carta de intenções" do Orson Welles cineasta apresentava um gênio. E assustou Hollywood, sempre avessa a eloquências. Sob outra chefia, a RKO e, mais tarde, outros estúdios cortariam as asas do diretor. A década de 1940 viu Welles repetir o destino de Ícaro, caindo do céu ao chão, com filmes em princípio incríveis como "Soberba", de 1942, e "A Dama de Shangai", de 1947, sendo brutalmente adulterados pelos produtores.

Essa relação atritada com Hollywood indicaria não uma pacificação, mas uma radicalização extrema do seu projeto estético —que era, essencialmente, um projeto existencial, de artista no mundo, em que vida e obra se confundem numa contiguidade. Numa afeição irrestrita a todo tipo de expressão —do palco de mágica, literatura pulp e teatro vaudeville à alta literatura que o fez adaptar soberbamente Franz Kafka e Karen Blixen para o cinema—, Welles assumiu uma performance de "artista em tempo integral", seja atuando em filmes ordinários, comercial de uísque ou dissertando sobre gastronomia ou touradas.

De certo modo, Welles vai repetir na vida a saga dos personagens de seu autor predileto, William Shakespeare. Porque realizar um filme é uma epopeia, é mudar todo um mundo. "Othello", de 1952, é exemplo emblemático. Filmado durante três anos entre o Marrocos, a Espanha e a Itália, teve largas interrupções. Fase mais importante para Welles, a montagem conseguiu uma uniformidade pulsante e uma materialidade que revelavam as dramáticas condições de realização, como as costuras em linha grossa de uma roupa.

O entendimento de que Welles caiu em desgraça, diante de vários projetos inacabados ou não realizados, talvez não faça muito sentido. A artista e poeta carioca Katia Maciel lembra que "Leonardo Da Vinci era sobretudo um mapa de projetos, e Orson Welles tem essa estrela do Da Vinci, de conseguir fazer algumas coisas, mas os projetos serem sempre muito mais ambiciosos do que ele conseguiria fazer". Um artista, portanto, o é pela criação.

Orson Welles não deve habitar o imaginário de quem não teve o cinema como experiência de imagem superior e única. Hoje, um esticar de braço com câmera —de celular— na mão nos torna a todos "autores", e a imagem é algo prosaico, do cotidiano. Num tempo em que o extraordinário e o banal se confundem, esse "maior que a vida" wellesiano não deve mesmo emocionar muito.

Mas, ao mesmo tempo, o "personagem Orson Welles" não parece distante da performance hiperexpositiva das redes sociais. E a ideia do fragmento e das disrupções presentes na obra wellesiana não diferem da atual moral que faz do entrecho algo autônomo. Aliás, a obra do cineasta, entre filmes acabados e interrompidos, poderia ser revista dessa forma bastante atual, quase como uma série.

Interessante que o destino de "O Outro Lado do Vento", que o cineasta filmou entre 1970 e 1976, mas que permanecia inacabado, derruba todas as suspeitas sobre Orson Welles não pairar mais entre nós. Um crowdfunding lançado em 2015 para viabilizar a finalização avançou a passos lentos. Até que a Netflix, esse "novo conceito" de cinema em casa que ironicamente só tinha a oferecer no Brasil o mediano "O Estranho", bancou a finalização e o lançou na sua grade.

Sem dúvida, a meta era agregar valor à marca. O fato é que finalmente, em 2018, o mundo pôde assistir a essa melancólica e belíssima obra do mestre. E um Welles sardônico certamente não acharia de todo mal a ajuda desse gigante do streaming.

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