Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa

A mandinga, o oportunismo e a ciência

Respeito aos protocolos científicos deveria valer para a saúde e demais políticas públicas

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A pandemia revelou que parte da sociedade acha difícil interpretar e utilizar os resultados da ciência. A polêmica sobre como combater a Covid não se restringiu à política. Médicos defenderam os "tratamentos preventivos" propagandeados pelo Planalto. Nas conversas cotidianas, alguns diziam "conheço alguém que tomou a vacina e morreu. Logo, a vacina não funciona". Pais assinaram manifestos contra escolas que exigiram o atestado de vacinas para que crianças frequentassem as aulas.

Essas controvérsias não deveriam surpreender. Ciência é terreno movediço onde a certeza não tem espaço, ao contrário da religião. A Bíblia e o Alcorão podem acalmar os crentes, delimitando regras e verdades, mas a ciência, que salva vidas e não almas, é terreno da dúvida ponderada.

Na prática científica não há como garantir a verdade. Um medicamento pode ter se revelado eficaz em muitos casos, mas eventualmente apresenta efeitos colaterais inesperados. Resultados empíricos incompatíveis com os modelos dominantes são usuais na história da ciência, motivando novas pesquisas.

Ilustração de Edson Ikê, em 10/04/2022, mostra, em tons de azul, perfil de homem com barba olhando para uma árvore, de tronco reto e copa redonda; do seu olho sai um facho amarelo escuro com a silhueta de um pássaro voando em direção à árvore. Ao fundo, às costas do homem, é possível ver uma torre
Edson Ikê

O método científico procura adotar procedimentos para verificar o grau de robustez de conjecturas. No caso de tratamentos de saúde, uma etapa é sortear, dentre um grupo grande de pessoas, uma parte para tomar a droga, outra para tomar uma substância inócua, sem que ninguém saiba o que está ingerindo. Pode-se então observar se o grupo que tomou a droga tem menos problemas do que os demais.

Uma única pesquisa, contudo, não é suficiente. As pessoas selecionadas podem ter características específicas, ou o resultado pode ser fortuito. Por essa razão, os experimentos são repetidos em muitas circunstâncias distintas. Os medicamentos que utilizamos no nosso cotidiano devem passar por esse excruciante processo de testes que tentam dar maior confiabilidade à sua prescrição.

Durante séculos, médicos administraram sangrias em doentes, acreditando que assim poderiam curá-los. Como não havia método científico, não se testava se a sangria garantia melhor recuperação do que outras práticas. Os sobreviventes agradeciam o tratamento. Os demais deviam aceitar a escolha de Deus.

Todos estamos sujeitos a prejulgamentos. Muitos adotam facilmente narrativas conspiratórias que parecem dar conta do que observamos, pinçando dados convenientes aqui e acolá para justificar seu argumento. Por outro lado, os protocolos da ciência e o cuidado com o método de análise procuram garantir mecanismos para tentar nos prevenir do fanatismo motivado por nossas percepções subjetivas.

As pesquisas mais recentes sobre o uso da cloroquina em pacientes com Covid indicam sua ineficácia. As vacinas reduziram o número de mortos significativamente. É o que temos de melhor, no momento.

As muitas controvérsias durante a pandemia revelaram uso oportunista da ciência. Alguns se declararam indignados com as propostas do Planalto, mas em outras áreas da política pública defendem teses igualmente pouco embasadas pela evidência.

A análise em economia historicamente sofreu com pouca capacidade computacional, bases de dados inadequadas e tentativas pouco robustas de estimação causal. Nas últimas décadas, contudo, o aperfeiçoamento dos desenhos das pesquisas tem permitido identificar com maior confiabilidade relações de causalidade, incluindo a adoção, na medida do possível, de experimentos aleatórios e de outras técnicas, como quase-experimentos. Angrist, prêmio Nobel de economia em 2021, e Pischke sistematizam essa agenda em The Credibility Revolution in Empirical Economics, publicado no Journal of Economic Perspectives.

O debate sobre política pública no Brasil, entretanto, com frequência menospreza a evidência empírica. Há muitos resultados, por exemplo, sobre técnicas de gestão em educação e seu impacto positivo sobre o aprendizado dos estudantes. A aprovação do novo Fundeb ignorou essa literatura e resultou, essencialmente, em um aumento linear de renda para professores da ativa e aposentados.

Houve quem defendesse no Brasil, há poucos anos, que a elevada taxa de juros do Banco Central (BC) seria a responsável pela alta recorrente dos preços. A inflação se reduziria caso o BC optasse por reduzir a sua taxa de juros.

A tese pode ser sedutora, mas há evidência empírica? Houve países que reduziram suas taxas de juros e a inflação foi controlada, enquanto outros a aumentaram, tendo efeitos opostos em circunstâncias similares? Recentemente, a Turquia seguiu o protocolo defendido por heterodoxos e colheu o inverso do pretendido: o câmbio se desvalorizou e a inflação aumentou.

Sessenta anos depois da criação da Sudene, não deveríamos analisar o que deu errado nas políticas de desenvolvimento regional? Em que medida benefícios tributários, como o Simples ou a desoneração da indústria química, foram bem-sucedidos? Muitas intervenções setoriais fortalecem grupos que sobrevivem graças ao favor oficial. Eles resistem a avaliações de impacto e se opõem à retirada das benesses, mesmo quando as intervenções fracassam.

A política pública deveria seguir, na medida do possível, protocolos semelhantes aos adotados na saúde. Há pesquisas com microdados e grupos de controles realizadas em outros países? Quais os detalhes das medidas de intervenção pública nesses países e os seus resultados? Qual a robustez dos instrumentos utilizados para avaliar o impacto dessas políticas no Brasil e como garantir que serão revistas em caso de frustração com os resultados?

Os procedimentos da ciência não garantem bons resultados, mas permitem reconhecer fracassos e podem sugerir novos caminhos. Deixar de repetir velhos erros já seria um avanço.

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