Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa
Descrição de chapéu inflação juros

Transição com pé trocado

O descontrole fiscal pode levar o povo a sofrer

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A transição para o novo governo começou com a polêmica sobre o dilema entre implementar as promessas de campanha e equilibrar as contas públicas. O presidente eleito veio a público perguntando: "Por que as pessoas são levadas a sofrer para garantir a tal estabilidade fiscal?"

A resposta curta é simples. Dependendo das circunstâncias, as pessoas podem sofrer ainda mais na ausência de "estabilidade fiscal". A resposta completa requer explicar a ponderação "dependendo das circunstâncias".

No começo da década passada, os EUA e países europeus enfrentavam recessão e deflação, apesar de as taxas de juros estarem próximas de zero. A expansão dos gastos públicos, naquelas circunstâncias, auxiliou na retomada da atividade econômica.

Ilustração mostra dragão preto e branco sobre fundo vermelho
Ilustração mostra dragão preto e branco sobre fundo vermelho - Edson Ikê

Atualmente, as condições são diferentes. Esses mesmos países enfrentam inflação elevada, depois da recuperação da economia após os primeiros meses da pandemia.

Nem tudo foi culpa da gestão da política econômica. Há uma inflação global, ocasionada em parte pelos problemas decorrentes da falta de diversos equipamentos, em parte pelos impactos da Guerra da Ucrânia sobre os preços das commodities.

No caso dos EUA, a gestão Biden tem sua parcela de responsabilidade no problema. Ele iniciou seu mandato com um impressionante aumento dos gastos públicos. Muitos economistas alertaram sobre os riscos dessa política naquelas circunstâncias.

Lawrence Summers, por exemplo, apontou, tanto em colunas na imprensa como em seguidos relatórios mais técnicos, que os dados do mercado de trabalho subestimavam a expansão forte da economia e a escassez de mão de obra que pressionava a espiral salários-preços.

O resultado, concluía, seria uma inflação alta e persistente, a maior em quatro décadas, que requereria um forte aumento das taxas de juros para ser controlada. O custo do ajuste seria uma possível, e dura, recessão. Remédio amargo, mas melhor do que a alternativa.

Seus alertas foram de pouca valia. A gestão Biden e o banco central dos EUA, o Fed, acreditavam que a inflação seria temporária. Essas crenças se revelaram equivocadas.

Nossos desafios são ainda maiores que os dos EUA. O orçamento do governo federal para 2023 ultrapassa o teto de gastos, como sistematizaram Marcos Mendes e Paulo Hartung em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, muito menos se incluídas as promessas adicionais feitas durante a campanha.

O déficit em 2023 pode oscilar entre 1,3% e 3,5% do PIB, dependendo do que venha a ser aprovado.

A equipe de transição sugeriu aprovar uma emenda constitucional para acomodar maiores gastos permanentes. O anúncio, contudo, deixou de fora a engenharia da proposta: quanto seria gasto a mais, quais promessas seriam contempladas no primeiro ano, quais delas ficariam para os anos seguintes, e como essa expansão das despesas seria posteriormente financiada.

Essa proposta ocorre em meio a um orçamento do governo federal bastante dispendioso para um país emergente, capturado por uma profusão de grupos de interesse. A cada proposta de expansão do gasto social, eles procuram apropriar-se de parte dos recursos, ampliando os subsídios para o setor privado ou viabilizando emendas de parlamentares.

A complacência do Executivo com a captura dos recursos públicos por políticas mal concebidas resulta em um Estado caro, porém pouco eficaz em cuidar da população. Gastamos muito, mas gastamos mal, como procurou mostrar o documento "Uma agenda econômica pós-pandemia".

Com os recursos de que dispomos, deveríamos obter resultados bem melhores, por exemplo, no aprendizado dos estudantes, quando comparamos com o que conseguem outros países emergentes. Deveríamos, também, retirar mais pessoas da pobreza extrema.

Como ocorria nos EUA há dois anos, a evidência indica que o mercado de trabalho está próximo da taxa neutra de desemprego, aquela abaixo da qual a inflação volta a ser pressionada, como tem apontado Samuel Pessôa.

Com os recursos atuais, pode-se aumentar a eficácia da política social e equilibrar as contas públicas. Essa agenda, contudo, requer enfrentar os benefícios concedidos aos grupos de interesse e reconhecer a necessidade do freio de arrumação.

Por outro lado, acomodar as pressões em vez de enfrentar os dilemas pode ser a porta de entrada de uma dinâmica de agravamento rápido da dívida pública. A política é soberana, mas deve estar atenta às consequências das suas decisões. Anúncios que descuidam da técnica podem resultar em efeitos colaterais danosos.

O mercado não é um sindicato com o qual se negocia um acordo. Ele é composto de muitos gestores do setor privado, como fundos de pensão e empresas, que avaliam, descentralizadamente, como cuidar dos recursos que administram.

Essas decisões são balizadas pelo que esperam que vá acontecer na economia. Caso o cenário seja de maior crescimento econômico, esses gestores celebram e aumentam os investimentos.

Por outro lado, se há risco de medidas populistas que resultem na volta da inflação elevada e no aumento descontrolado da dívida pública ou da carga tributária, as taxas de juros de mercado se elevam e o investimento se retrai, prejudicando a geração de emprego e de renda. O aumento do prêmio de risco leva à desvalorização cambial, empobrecendo a população.

Iniciar o governo com parcimônia permite correções de rumo no futuro. Caso, contudo, a opção seja por iniciar com elevado crescimento do gasto obrigatório, corre-se o risco de inviabilizar um ajuste de rota mais à frente, comprometendo o restante do mandato.

Vale lembrar o que ocorreu recentemente no Reino Unido. Kwasi Kwarteng, ministro da Fazenda de um governo conservador, propôs um conjunto de medidas aparentemente pró-mercado. Elas incluíam desonerar os mais ricos, eliminar a elevação das contribuições para a seguridade social, cancelar o aumento da tributação das empresas e subsidiar o preço da energia.

Na avaliação da maioria dos analistas, as medidas seriam fiscalmente insustentáveis. O resultado foi a elevação dos juros de mercado e a desvalorização cambial. Foi o fim do governo da primeira-ministra Liz Truss, que mal havia começado.

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