Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa

Os técnicos, a política e o mando

A construção de um peculiar Estado minuciosamente intervencionista

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O Brasil tem uma tradição de legislação complexa e minuciosa na economia, acompanhada por instituições de Estado com forte poder de intervenção discricionária nos mercados.

Nos países anglo-saxões, a legislação é menos invasiva nos contratos entre partes privadas do que em países latinos, como o Brasil, de acordo com os resultados de agenda de pesquisa com microdados sistematizada por La Porta, Lopez-de-Silaba e Shleifer no "Handbook of the Economics of Finance".

As intervenções do poder público, inclusive para promover mudanças das regras do jogo, tendem a ser lentas e cuidadosas, por vezes com avanços pontuais seguidos de recuos.

A tradição latino-americana, e brasileira em particular, é bem distinta.

Ilustração de Edson Ikê publicada na Folha de S.Paulo em 10 de dezembro de 2023 mostra, sobre um fundo vermelho, personagem usando terno. Ele aparece no centro da cena, é feito em traços preto e branco, usa um terno e está de perfil, olhando para o lado direito da cena. Com a mão esqueda, segura um prato, com uma mão e um pedaço de manga de terno. Uma outra mão gigante aparece cutucando a nuca do homem
Ilustração - Edson Ikê

As regras cheias de nuances distinguem incontáveis casos particulares. Por vezes, o objetivo é tentar determinar o resultado das decisões de mercado, limitando severamente a liberdade contratual.

Mesmo em caso de contratos juridicamente perfeitos, o Estado intervém com frequência e arbitra eventuais queixumes, por vezes rompendo com o que havia sido acordado livremente.

Decisões arbitrárias do poder público ocorrem frequentemente em regimes de concessão, nos mercados de crédito ou em setores regulados.

Esse Estado autoritário e discricionário foi consolidado na era Vargas, que criou uma extensa legislação intervencionista e instituições com amplo poder de mando.

Foram estabelecidos sindicatos com monopólio de representação, assim como federações e confederações de setores de empresas, que recebiam tributos recolhidos da sociedade. Nada de liberdade de adesão ou de contribuição.

Herdamos instituições peculiares quando comparados com outros países, como a Justiça do Trabalho.

Alguns órgãos públicos contam com representantes do setor privado para estabelecer políticas públicas ou sanções que afetam as empresas do próprio setor.

O Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), que possuía o monopólio do resseguro no país, era responsável pela regulação do setor e contava entre seus sócios o governo federal e empresas privadas de seguros.

Preços das mais diversas atividades eram tabelados. Havia múltiplas taxas de câmbio, que variavam conforme o bem a ser comercializado. A realização do comércio dependia de autorização oficial.

Em 1945, tentou-se iniciar uma democracia em meio as instituições, ideias e valores herdados da longa era Vargas. O Estado intervencionista liderava, mediando os interesses de grupos do setor privado, apoiado por uma burocracia que acreditava que os desafios econômicos se resumiriam, essencialmente, a problemas técnicos e a distorções da política.

Esse sistema foi na contramão da economia de mercado como espaço da inovação, da concorrência e dos ganhos de produtividade. Neste caso, as regras do jogo permitem amplo espaço para o experimentalismo privado.

Não se sabe o que irá dar certo. Por isso, deve-se deixar empreendedores independentes explorarem, de forma descentralizada, múltiplos caminhos, cada um fazendo o que achar que poderá ser mais promissor.

A maioria irá fracassar. Mas os bem-sucedidos trarão novidades que serão posteriormente copiadas pelos demais, aumentando a produtividade e a renda.

As intervenções econômicas do setor público devem ser cirúrgicas e cuidadosas com a técnica, promover atividades com benefícios difusos, como ciência e tecnologia, e fortalecer a governança.

Tudo isso, contudo, era estranho ao poder público no Brasil dos anos 1950.

As normas minuciosas produzidas pela burocracia insulada, que acha que sabe o que a sociedade precisa, no mínimo detalhe, reduz o espaço para a criatividade e o empreendedorismo.

A política, desde a Primeira República, era centrada na mediação entre os imensos poderes de um governo central forte e os interesses paroquiais, como descrito no clássico "Coronelismo, Enxada e Voto", de Victor Nunes Leal.

O governo Vargas procurou superar o paroquialismo e criou uma burocracia técnica para implementar políticas nacionais. Na democracia que se seguiu após 1945, esse grupo de técnicos expressava sua rejeição ao clientelismo e procurava implementar suas decisões.

A visão dominante à época combinava nacionalismo (desenvolvimento passava por produzir localmente tudo o que fosse possível), com a liderança de técnicos que coordenavam as políticas de desenvolvimento setoriais, distribuindo incentivos, proteções e alinhando os diversos interesses.

Tudo isso em meio a uma gestão pública desconectada da produção acadêmica internacional sobre política monetária e a microeconomia. O resultado dessa agenda foram alguns anos de alto crescimento, seguidos por aumento da inflação e problemas graves nas contas externas. Na sequência, uma crise severa e longa.

Não se sabia bem como fazer política de estabilização, e qualquer medida de ajuste gerava a reação dos grupos organizados que dependiam dos favores oficiais.

Os bastidores dessa história conturbada são descritos por Lourdes Sola no seu livro "Ideias Econômicas, Decisões Políticas", cuja segunda edição, revista, foi publicada no último mês.

Lourdes, que entrevistou protagonistas dessa história e cuidou de estudar conjuntamente a economia e a política, enfatiza a peculiar governança da gestão pública, analisa a tensão entre os técnicos e a política na época, além da aliança tática entre economistas que pareciam de campos distintos.

Seu livro termina no golpe de 1964. Na década seguinte, reincidimos nos mesmos erros, com a tecnocracia provendo estímulos e coordenando os investimentos.

Ocorreram alguns anos de alto crescimento, inflação crescente até se tornar disfuncional, em meio a distorções microeconômicas que prejudicaram a produtividade. Seguiu-se uma profunda recessão.

Há uma década, repetimos um ciclo semelhante, mas ao menos sem o descontrole da inflação.

Lourdes acaba por contar muito mais do que promete seu livro. Ela descreve ideias, instituições e questões de fundo que ainda nos acompanham, tanto tempo e tantas crises depois.

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