Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha

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Ideologia artificial

Como o robô criou pequenas narrativas de guinadas à esquerda e à direita

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A China prepara medidas para levar uma espécie de Revolução Cultural aos robôs da Inteligência Artificial. As regras passam a valer a partir de 15 de agosto. As ferramentas de Inteligência Artificial (IA) chinesas, como relatou Igor Gielow nesta Folha, precisarão entender o que são os "valores socialistas fundamentais".

Mulher acena atrás de bandeira da China, em Hong Kong, durante celebrações do aniversário de 26 anos da transição do domínio inglês para o chinês. Foto: Isaac Lawrence / AFP - AFP

Eles dizem respeito, entre outros, a temas como prosperidade, civilidade, democracia, liberdade, igualdade, justiça, patriotismo, integridade e amizade. A inteligência natural humana (ou a estupidez) pode fazer que qualquer coisa caiba nessas palavras.

A centralização de decisões pelo Partido Comunista (PC) chinês, em que pesem diferenças internas, não é novidade. A experiência socialista já há décadas migra para um modelo de capitalismo de estado com traços autoritários e êxitos extraordinários na economia, na pesquisa, na tecnologia e em outras áreas.

A IA, como se sabe, alimenta-se de uma montanha de informações e discursos que geram respostas muitas vezes erradas ou enviesadas do ponto de vista ideológico.

Outro dia, arrisquei a sorte em busca de um possível destino para um enredo: "Filho de família progressista torna-se militante trotskista e anos depois dá uma guinada para a extrema direita".

O ChatGPT apresentou uma pequena proposta de narrativa.

Na adolescência, o jovem, que recebeu o nome bíblico de Lucas, "se apaixonou pelas ideias do famoso socialista russo, Leon Trotsky". Ele estudou marxismo e defendeu a revolução proletária.

"No entanto, conforme Lucas amadurecia, suas crenças começaram a se transformar gradualmente. Ele percebeu que suas ideias e teorias podiam ser carentes de uma visão mais abrangente. Foi então que ele decidiu dar uma guinada ideológica", sugeriu o bot.

Lucas, então "começou a questionar as premissas dos movimentos de esquerda e a se interessar por perspectivas alternativas. Ele mergulhou em estudos sobre política e economia, procurou compreender melhor as diferentes correntes de pensamento e decidiu abrir sua mente para novas ideias".

Até que um dia, "após muitas leituras e reflexões", nosso herói encontrou um grupo de pessoas que acreditavam na valorização da tradição, no nacionalismo e na importância da livre iniciativa. E decidiu se aproximar.

"Lucas ficou surpreso em descobrir que as pessoas com quem estava conversando não se encaixavam nos estereótipos negativos que ele tinha ouvido falar sobre a extrema-direita. Eles eram educados, respeitosos e demonstravam estar verdadeiramente preocupados com a preservação da identidade cultural e a liberdade individual."

Depois disso, então, foi só o ex-trotskista correr para o abraço.

Bem, o narrador artificial encontrou razões ideológicas esquemáticas para a mudança e arrumou um grupo de direitistas extremados bem legal para o Lucas dar sua guinada…

Mas é preciso lembrar que ele partiu de uma premissa, um plot básico. Com um breve argumento em sentido contrário, o que teria levado o filho de uma família conservadora, que militava na extrema-direita,a virar o fio e tornar-se trotskista?

Não é tão diferente. O André, como o robô apelidou este outro herói, vai um dia a uma reunião de ativistas de esquerda e não acha assim tão ruim. Impressiona-se com o fervor da conferência que presencia e decide "fazer algumas pesquisas sobre o trotskismo e entender melhor o que ele representava". As coisas, a partir daí, foram se transformando: "À medida que mergulhava mais fundo no assunto, suas perspectivas começaram a mudar. Ele percebeu que muitas das ideias que até então defendia promoviam desigualdades e estigmatizações." Eis então que André deixa para trás a extrema-direita e torna-se um campeão da justiça social.

São argumentos rasos, claro, baseados num suposto bom senso, mas têm lá, ao menos nestes casos, um certo espelhamento. O Chat GPT também foi razoável ao responder quais seriam as vantagens do regime chinês sobre a democracia liberal dos EUA. Ressaltando que ideologias envolvem uma boa dose de "subjetividade" (achei bacana um robô falar em subjetividade), explicou, por exemplo, que a planificação centralizada permite que se implantem políticas de maneira mais rápida e que os resultados não demorem a surgir. E não deixou de lembrar que a China retirou nos últimos anos milhões e milhões de pessoas da linha da pobreza.

Como o ChatGPT chinês vai se comportar em casos semelhantes? Será que vai criar historinhas como as de Lucas e André? E irá apontar alguma vantagem da democracia liberal americana sobre valores socialistas fundamentais? Logo saberemos. Felizmente, não preciso de um ou de outro para formar meus juízos. E em matéria de enredo, que era o que me interessava, espero um pouco mais de imaginação em próximas tentativas.

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