Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu terrorismo

O terror da mulher e da democracia

Todos os excluídos estão compreendendo que são sujeitos e não objetos

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Eu cresci com a palavra “xiita” significando algo radical, extremista e pejorativamente autoritário. Isso é muito xiita. Você está exagerando, está sendo xiita demais. Uma palavra que adolescentes rebeldes diriam a seus pais ou a governos que estavam na batalha de impor limites, cabidos ou descabidos.

Décadas depois, atravessando o Atlântico e o Índico e sendo um pouco menos ignorante, aprendi com alguma surpresa que, perto de alguns braços sunitas, os xiitas até podiam ser razoáveis. Ou, para ser mais precisa, descobri que as narrativas e as famas das palavras encobrem realidades bem mais complexas.

O caso é que, em terras aparentemente longínquas, xiitas e sunitas brigam, sunitas e sunitas brigam, xiitas e sunitas e ocidentais brigam. Com o perdão da língua, todos brigam e se explodem mutuamente. Pois sobra para Torres Gêmeas, capitais europeias e aeroportos mundo afora. Sim, religião e dinheiro estão ligados e globalizados.

Em agosto de 2019, o EI-K, braço radical armado sunita, deixou quase cem mortos em um casamento xiita em Cabul. Explodindo-me eu explodo os outros. Xiitas não deveriam existir: não poderiam casar e formar famílias. Aliás, casamento, festa, riso, sexo, prazer também não deveriam existir, esses demônios “ocidentais”.

Em maio de 2020, com a mesma metodologia, fizeram um ataque terrorista a, pasmem, uma maternidade em um bairro xiita. Ou seja, xiitas não deveriam existir, casar nem reproduzir. Dos 25 mortos, 16 eram mães e bebês. Devemos matar dentro de nós a empatia e qualquer forma de identificação com o outro humano se queremos fazer a guerra santa ser vencedora. E isso vale para qualquer “guerra santa”: eu tenho que alcançar o estado máximo de desprendimento e te reduzir a nada, a rato exterminável. Desumanizo eu e você na mesma operação psíquica. Pratico um gesto desumano, contra um outro reduzido a não humano.

Em maio de 2021, este ano, mataram dezenas de pessoas de um bairro xiita e pobre de Cabul, num ataque a uma escola de meninas. O que estou precisando afirmar? Xiitas, e particularmente mulheres, não deveriam existir, casar, fazer sexo e muito menos falar, pensar e estudar. Odeio mulheres. Cubro seus corpos, dinamito suas escolas, suas cabeças e calo suas bocas.

O terror na verdade é o medo aterrorizado da mulher, do feminino, do diferente, da alteridade. Luto contra o outro que no fundo desejo, temo e invejo. Sim, desejo a mulher e desejo a liberdade. Desejo a festa, o consumo, a potência, Eros e muitos aspectos da vida ocidental. E não quero me ver como excluído de tudo isso. Mas não posso ser infiel, fraco nem vulnerável. Faço força todos os dias para me manter na linha dura e protetora da minha fé. Não posso duvidar de Deus, da Pátria, da Família. Do Islã. De todas as causas escritas assim mesmo, em letras maiúsculas, álibis do Bem.

EI-K e Talibã, sunitas e armados, são só facetas de um vasto mosaico. Grupos de todo o mundo disputam capital, território e a primazia da pureza. Lutam contra os que não são guerreiros tão santos e tão radicais quanto se deveria ser. Eu preciso me acreditar do lado do verdadeiro bem e de seus profetas. Você é herege e está negociando com o inimigo russo, com o inimigo americano, com o Ocidente corrupto, com o partido ladrão.

O detalhe é que não confiamos mais em patriarcas. E as mulheres querem estudar e tudo o mais. Compreenderam que são sujeitos, e não objetos. E todos os excluídos estão compreendendo a mesma coisa. Não vai dar para retroagir. O que chamamos de democracia é a consciência de nosso direito de existir.

Pense bem em nome do que, no fundo, você vai matar, morrer ou sair às ruas nos próximos tempos.

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