Descrição de chapéu The New York Times terrorismo

Ataque a escola em Cabul dá sinais de que Afeganistão pode estar à beira de se desintegrar

Explosões no sábado (8) mataram ao menos 80 meninas de minoria étnica historicamente perseguida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Adam Nossiter
Cabul (Afeganistão) | The New York Times

​Eles levaram as meninas morro acima uma a uma, seus corpos envoltos em mortalhas e mantas cerimoniais. Os homens que carregavam os caixões olhavam fixamente para longe. O silêncio era rompido por orações proferidas aos gritos.

Os corpos não paravam de chegar, e os coveiros trabalhavam sem parar sob o sol escaldante. O ritmo incessante era a prova tenebrosa da notícia arrasadora do dia anterior: as explosões triplas no sábado (8) à tarde numa escola local produziram um massacre cujos alvos principais foram meninas. Mal havia espaço para todas as novas sepulturas no alto da colina íngreme.

A escala da chacina e a inocência das vítimas eram provas adicionais e assustadoras do desabamento violento do país, onde o Taleban conquista avanços diários e o governo parece ser incapaz de barrar seu caminho ou proteger a população contra massacres. Pessoas em luto estavam em toda parte no domingo (9) no bairro atacado, habitado por membros da minoria étnica perseguida hazara, muçulmana xiita. Mas praticamente não havia segurança nenhuma para protegê-las.

Mulheres hazara em luto por vítimas de ataque a escola em Cabul, no Afeganistão - Kiana Hayeri - 9.mai.21/The New York Times

O número de mortos, que pode ter incluído mais de 80 meninas, superou até mesmo os massacres anteriores sofridos nesse assentamento habitado por uma minoria que há anos é perseguida pelo Taleban e, nos últimos anos, pelo Estado Islâmico. O segundo vice-presidente afegão, Sarwar Danesh, ele próprio hazara, disse que o ataque matou mais do que as oito dezenas de garotas.

Após a invasão dos EUA em 2001, a minoria hazara aproveitou ao máximo as novas oportunidades educacionais e de negócios que se abriram no país. Os hazaras compõem uma grande parte da geração tecnocrática jovem do Afeganistão. Mas, ao mesmo tempo, eles, que são xiitas, viraram os alvos preferidos de militantes sunitas como os novos insurgentes do Taleban e do Estado Islâmico.

A indignação dos hazaras com o governo foi crescendo, e eles acusam as forças de segurança de ficar paradas, assistindo sem nada fazer, enquanto eles sofrem baixas pavorosas. Agora, às vésperas do que muitos temem que será o retorno do domínio do Taleban em muitas partes do país, sem falar em uma nova guerra civil que alguns consideram ser inevitável, os hazaras estão cada vez mais determinados a cuidar de sua segurança eles próprios.

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

Um carrinho de mão cheio das roupas ensanguentadas das meninas, enfiadas em sacos plásticos, foi deixado no domingo diante de uma mesquita para onde alguns dos corpos foram levados. Em outra mesquita, um salão no subsolo cheio de mulheres de roupas pretas ecoava com o som de choro abafado.

Homens de expressão sombria se reuniram nos degraus de uma terceira mesquita, falando em voz baixa sobre pegar em armas e unir-se a um comandante hazara chamado Abdul Ghani Alipur, que está foragido do governo.

Diante dos portões de metal da escola de segundo grau Sayed Ul-Shuhada, retorcidos pela explosão, os resquícios dos momentos finais de vida das meninas tinham sido empilhados numa cova, onde pessoas reunidas em silêncio os examinavam. Eram mochilas rasgadas, cadernos chamuscados, sandálias retorcidas e páginas soltas de anotações.

Por todo o assentamento de Dasht-e Barchi, no domingo, famílias enlutadas de hazaras sepultaram suas filhas com idades entre 11 e 18 anos. Filas de pessoas em luto subiam os morros da área. O ar estava cheio dos lamentos para os mortos vindos das mesquitas. Algumas das meninas ficaram tão desfiguradas nas explosões que seus restos mortais não puderam ser identificados.

Pairava no ar o medo de que esse massacre tivesse sido apenas um prelúdio.

“Não podemos fazer nada exceto chorar os mortos”, disse o comerciante Jawed Hassani diante da mesquita Imam Ali. “Apoiamos o governo, mas o que recebemos de volta são ataques. Essas meninas eram de famílias de classe trabalhadora. Elas são pobres, não têm nada.”

Ninguém reivindicou o ataque até agora.

O governo atribuiu as explosões ao Taleban, que negou qualquer participação. Mas o Taleban habitualmente trava perseguição violenta aos hazaras, e o grupo tem um histórico de oposição à educação para meninas, especialmente adolescentes. Alguns analistas, no entanto, colocaram a culpa pelo massacre nos remanescentes de setores renegados do Taleban que se filiaram ao EI.

Sejam quem forem os responsáveis, parecem ter se esforçado para matar o maior número possível de meninas. Primeiro, um atacante suicida detonou um carro cheio de explosivos diante dos portões da escola. Quando as estudantes —naquele horário eram todas meninas, embora a escola seja mista— saíram correndo em pânico pelas ruas do bairro, duas outras bombas explodiram, matando ainda mais pessoas. Quase todas as vítimas foram meninas.

“Ontem os sonhos delas foram destruídos”, comentou o trabalhador diarista Ghulam, preparando-se para rezar pelos mortos na mesquita Qamar-e-Bani Hashim. “Hoje vamos enterrá-las com milhares de sonhos. Essa escola atacada é uma das mais pobres da área. Essas meninas não tinham nem 15 centavos para comprar pão.”

A impressão que se tinha no domingo era que os hazaras do assentamento de Dasht-e Barchi, com mais de 1 milhão de habitantes, não estavam tão preocupados com a identidade exata dos assassinos. Seus rostos ostentavam a expressão de resignação de uma minoria eternamente perseguida. Muitos observaram amargamente que até uma hora depois do ataque do sábado não se via um único integrante das forças de segurança perto da escola atacada.

E eles citaram muitos outros ataques aos quais já foram sujeitos e a repetida omissão do governo em protegê-los. “Eles nos explodem na rua, nas mesquitas, nos hospitais, nas academias de luta livre, em todo lugar”, disse Kazim Ehsni, imã da mesquita Qamar-e-Bani.

“Nem um único policial apareceu ontem depois do ataque. Agora mesmo há uma multidão aqui, mas nem um único agente de segurança. As pessoas estão recolhendo os corpos de seus entes queridos”, prosseguiu. “Estamos em choque. Todo mundo está apavorado.”

Todas as pessoas aqui podem facilmente ignorar a ladainha dos ataques sofridos pelos hazaras de Dasht-e Bani ao longo dos anos. “Não cometemos crime algum, e agora isso aconteceu conosco mais uma vez”, disse um dos presentes em luto, Mohhamed Hakim Imon.

“Por que merecemos morrer? Quem comete esses crimes são inimigos da humanidade.”

Houve o ataque de outubro passado contra um centro educacional que fez 30 mortos e o ataque de maio de 2020 a uma maternidade, em que 15 mulheres morreram. Ambos foram vinculados ao EI. Houve o ataque de setembro de 2018 contra uma academia de luta livre que fez 20 mortos, o ataque a uma escola em agosto que matou 34 estudantes e a explosão em uma mesquita em 2017 que matou 39 pessoas.

Isso sem falar nos massacres de hazaras em Cabul no início dos anos 1990, durante a guerra civil, cometidos pelas forças do comandante Abdul Rasul Sayyaf e seu aliado Ahmad Shah Massoud, hoje saudado como herói nacional –mas não pelos hazaras.

A ausência de forças de segurança do governo no domingo, apesar do fato de os funerais serem alvos frequentes de ataques de extremistas, levou algumas pessoas a dizer que a comunidade hazara só pode depender dela mesma. “Se quisermos nos defender, homens e mulheres devem se armar”, disse Ghulam, o trabalhador diarista.

Para o parlamentar hazara Arif Rahmani, o ataque “força os hazaras a se armarem em defesa própria. Quer o governo goste ou não, as pessoas vão resistir e dotar-se de sua própria segurança. Os hazaras terão que tomar suas próprias decisões. Haverá homens armados em cada rua e esquina de seus bairros.”

No domingo, em frente à escola atacada, uma multidão cercou um idoso que gritava “Deus nos ajude!”. O vendedor ambulante Qasim Hassani, que o ouvia, comentou: “A única opção é pegarmos em armas. Acabamos de sepultar uma menina de 11 anos. Qual foi o crime dela?”.

Ele prosseguiu: “Se o governo não impedir esses terroristas de virem para nossos bairros, nós vamos impedir. Hoje sou apenas um camelô. Mas se eles continuarem a nos atacar, vou virar o próximo Alipur”.

O presidente Ashraf Ghani anunciou que a terça-feira (11) será um dia nacional de luto pelas vítimas.

A explosão foi tão poderosa que rachou as janelas de lojas situadas a uma distância considerável.

“É apavorante”, comentou Naugiz Almadi, uma mãe que segurava sua filha pequena no colo diante da escola. “Nós, hazaras, não temos ninguém que nos proteja. Apenas Deus."

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.