Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge
Descrição de chapéu maternidade

Filhos, Deus me livre

As pessoas falam pouco sobre a escolha de não ter filhos porque a decisão sempre será contestada por quem não sabe nada da sua vida

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Nas poucas vezes que tentei engravidar e levei o assunto maternidade a sério, senti um alívio enorme sempre que o resultado dava negativo.

O que me deixava ainda mais confusa sobre o que eu queria para mim. Por que eu tinha essa sensação de libertação se era algo planejado?

Por que não conseguia mergulhar num sentimento de frenesi ao vislumbrar uma coisa fofa, gorducha, uma mini-me?

Foi nesse período que admiti o que sabia a vida toda: não quero ter filhos.

Pausa.

Teste de gravidez onde se lê a palavra "não"
As pessoas apenas falam pouco sobre o assunto porque a decisão sempre será contestada por quem não sabe nada da sua vida - Ivan - stock.adobe.com



Não quero ter filhos. Foi uma decisão. Pensei mais sobre o assunto do que a maioria das pessoas que os tem. Analisei a minha falta de vontade, de instinto, de curiosidade e percebi que a ideia de passar um feriado chuvoso numa casa de praia com 15 pessoas me parecia mais atraente do que a de uma gravidez e tudo que vem depois dela.

Não foi um processo doloroso, mas anos de um assunto que poderia ter sido resolvido se a maternidade não fizesse parte de um roteiro pré-estabelecido na vida das pessoas. Nunca me senti cobrada por terceiros, mas a cobrança vinha de mim mesmo porque parecia natural que isso acontecesse um dia. O tempo foi embora e não cheguei nem perto de experimentar o entusiasmo que algumas amigas demonstravam com o assunto.

Mas, quando comecei a olhar ao redor, percebi que que há muita gente que se sente da mesma forma. As pessoas apenas falam pouco porque a decisão sempre será contestada por quem não sabe nada da sua vida.

A minha geração talvez seja a primeira a encarar a possibilidade de que não ter filhos é apenas uma escolha e se sinta menos julgada, cobrada e condenada. Sou muito grata às mulheres que têm pavimentado este caminho nas últimas décadas e que tiveram que lidar com uma inquisição muito pior.

Mas se no meu círculo íntimo o assunto é tratado com total normalidade, não dá para dizer o mesmo quando o debate é público. O que não falta é gente desconhecida para me explicar que a minha decisão esconde, na verdade, outras questões. Mal-amada, solteirona, amarga, egoísta, frustrada, baranga, velha. Todo mundo acha que só pode haver algo de errado com uma mulher que não sonha em trocar a vida que ela tem por outra com as responsabilidades afetivas e financeiras que ela já decidiu que não quer.

Na série "And Just Like That", a personagem Nya Wallace (Karen Pittman) é uma professora universitária, casada, às voltas com a tentativa de engravidar. Num dos episódios, ela diz que sua vida "beira a perfeição" e que talvez não queira a mudança gerada pela maternidade. Nada definiu a minha decisão tão bem quanto isso. As escolhas que me trouxeram até o meu presente me dão essa sensação de paz que pode ser o que representa uma "vida perfeita", ainda que recheada de problemas rotineiros.

Mas uma vida sem arrependimentos e sem ter sobre os ombros um peso que eu não queria carregar, por mais poética que a ideia parecesse. Não quero trocar o que tenho, o que escolhi com muita convicção apenas para satisfazer os ideais alheios. O que ainda gostaria de mudar, de fazer, de conquistar, não seria alcançado com um filho. Ou dois.

Problema resolvido? Claro que não. De uns anos para cá ganhou força a versão de que os filhos estão sendo substituídos por animais de estimação. Há poucas semanas, o Papa Francisco, uma voz influente mesmo entre não católicos, deu uma declaração que praticamente abençoa essa ideia. Ainda que falasse apenas aos fiéis de sua igreja, o Papa, mesmo sem intenção, fortalece o preconceito que existe sobre milhões de pessoas que decidiram formar suas famílias de uma forma diferente da tradicional. E a cobrança quase sempre recai em cima de quem? Das mulheres. Você já viu algum homem dar satisfação por não ter filhos? Nem eu.

Papa Francisco poderia valorizar o modelo excludente que a igreja chama de família sem provocar uma discussão que já deveria estar ultrapassada e que sempre cai no colo de nós, mulheres. Homens não ouvem de outros que não há maior amor do mundo do que ser pai. Ninguém escreve textão no Dia dos Pais dizendo que homens não podem se autodenominar "pais de pet". Ou que são mal-amados e mal resolvidos por chamarem seu pit bull de "filhão".

Não sei se há de fato pessoas que substituam filhos por animais de estimação, mas isso não deveria ser um problema. Da minha parte, tive o primeiro cachorro ainda criança. Vieram outros na sequência quando a maternidade nem assunto era. Não quero ter filhos. Ter gato ou cachorro é outro departamento. Mas tenho uma família linda e, importante, muito feliz. Um casal adulto tranquilo com suas decisões para lá de conscientes e dois gatos iti-malia-coisa-mais-fofa-da-mamãe ou cuti-cuti-bebezão-do-papai. É a família que se encaixa nos meus sonhos. Filhos? Deus me livre. E Deus foi muito bom comigo.

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