Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu mostra de cinema

Tá ligado no bagulho, professor?

'#eagoraoque' é um filme sobre a relação crispada entre intelectuais e manos das quebradas

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A cena tem dois minutos, mas é tão brutal e aflitiva que parece se arrastar por meia hora. Um jovem ator negro primeiro acaricia o rosto de um espectador branco e lhe sussurra "compre". Aproxima-se cada vez mais e, a dois centímetros do outro, berra 204 vezes o imperativo apoplético: "compre!". Haja perdigotos.

Noutra cena, o mesmo sujeito branco, um filósofo, conversa com os manos de uma quebrada. Diz-lhes que os intelectuais e o povo pobre da perifa podem aprender uns com os outros, devem se unir para revolucionar o Brasil. E ouve uma resposta taxativa: nem pensar.

"Nós aqui, vocês lá", fala um. "Debater, a gente debate entre nós, para o resto a gente ensina", diz outro. Uma moça negra informa ao sabichão que os universitários brancos são paternalistas e ideológicos, querem manipular os deserdados.

Ilustração de uma mulher negra falando perto do ouvido de um homem branco que está lendo uma revista, na qual é possível ler "CULTURA" na capa
Bruna Barros/Folhapress

Ela só acredita na autogestão e dá como exemplo quilombos, Panteras Negras e comunidades anarquistas. "Na moral, o bagulho aqui é cabuloso", completa um parça.

Estão todos uniformizados: camiseta, piercing, tatuagem, boné ou gorro. Repetem à náusea a pergunta que não quer calar: "tá ligado?". Um carinha resume tudo: "Nós num é branco, tá ligado? Isso é uma coisa que já bota um limitador gigante". Detalhe: ele é branco.

"Talvez não tenha ficado claro o que eu quis dizer", arrisca o filósofo. Para quê. Todos gritam, mas sobressai um brado irado: "para você, a gente não é capaz de entender!". O filósofo se cala. Branco como cera, careca e de cavanhaque ruivo à Lênin, ele baixa a cabeça.

São cenas que conferem alta voltagem a "#eagoraoque", um filme forte cujo título fraco é uma concessão às redes sociais, já que elas não são o seu assunto. Como foi um dos mais vistos na Mostra de Cinema de São Paulo, pode ser visto no seu site até segunda-feira; depois, estreará no cinema.

Ele é obra de um coletivo de doutores da USP: o crítico e escritor Jean-Claude Bernardet, o filósofo e músico Vladimir Safatle, o dramaturgo e cineasta Rubens Rewald.

O filme embaralha ficção e documentário a ponto de não se saber o que é real, encenação ou psicodrama. Fazendo o papel de si mesmos, Bernardet e Safatle são dirigidos por Rewald, outro digno representante da classe média de esquerda, uma categoria torpedeada pelo governo e meio que desprezada por feministas e militantes da negritude.

Bernardet, de 84 anos, é um intelectual da velha guarda que, em busca do aqui e agora, volta aos temas que vem pensando desde os anos 1960: as relações entre estética e política, pequeno-burgueses e lutas populares.

Com 47 anos, Safatle interpreta um filósofo da nova geração, um intelectual público e cosmopolita que, atento à micropolítica, busca se ligar aos corpos e à energia das periferias para incentivar uma revolução que ponha o Brasil de cabeça para baixo.

Logo na primeira cena, Bernardet vê uma menina jogando um game ultraviolento. Pergunta-lhe se gosta de matar gente. Cândida, ela responde: "gosto". Ele depois faz tiro ao alvo e canta a "Internacional" no chuveiro. Termina ferindo o próprio peito com uma faca.

E Safatle, tendo ao fundo uma estante com livros em francês, grego, latim e inglês, explica à filha que assembleias populares são encenações mecânicas, portanto imprestáveis para a revolução. Na bucha, a menina lhe pergunta: "como você quer fazer uma revolução sem ouvir os outros?".

O filme está cheio de papos cabeça entre Bernardet e Safatle. Em dois deles, são incomodados por pobres --uma empregada que passa aspirador e uma balconista que lhes serve café. Elas exemplificam uma alienação diversa daquela com a qual eles se entretêm. É raso, mas funciona.

Funcionam também os flagrantes de Mano Brown ("o que mata a gente é a cegueira e o fanatismo: deixou de entender o povão, já era") e Guilherme Boulos ("quem ocupou esse terreno há nove anos hoje tem sua casinha"). Mas a frase mais incisiva, a uma assembleia com milhares de estudantes, é de Marilena Chauí: "Boa noite, USP".

Ou seja, estão numa bolha. O encadeamento desnorteante de esquetes e realidade mostra que Rewald, em vez de dar explicações prontinhas, escancara contradições: o espectador que raciocine. (Outro exemplo do método do diretor está no curta-metragem "Democracia e Amor", feito com o filósofo Tales Ab'Sáber, disponível na internet).

Isso faz com que "#eagoraoque" gire às vezes em falso e o falatório das bolhas de acadêmicos e manos se instale. A terra firme da retórica suplanta o transe do real, tá ligado?

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