Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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CPI do 8 de Janeiro se debaterá entre estória e história

A explicação do dia de fúria não estará nos atos, mas nas narrativas

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A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre o 8 de Janeiro não se concentrará nos fatos ocorridos em Brasília naquele domingo. Eles se deram à luz do Sol e foram vistos ao vivo pelo Brasil todo. São imagens irrefutáveis de um ataque ao Planalto, ao Congresso e ao Supremo.

Mas o que alguns membros da CPI farão será sair no tapa para disputar a narrativa. A explicação do dia de fúria não estará nos atos, e sim nessa palavra capciosa que entrou para o vocabulário do chiqueiro da política: narrativa.

Como é um termo cujo sentido mudou às pampas nas últimas décadas, ele se tornou obscuro. Seu significado primário é encadear eventos num relato. Agora, a acepção corriqueira é conceituar os fatos de antemão para depois amoldá-los numa narrativa.

Ela passou a valer mais que a realidade. Um intrincado labirinto foi percorrido até se chegar a essa mistificação. Na sua "Poética", Aristóteles sustentou que a narrativa é vital na construção de uma tragédia, cujo objetivo é levar o público à catarse.

A ilustração é composta de diversos balões de fala. Cara balão possui formato, textura e cores diferenciadas. Os balões saem de diversos emissores: pé, pena, bocas humanas, bananas, bunda ou dedos.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 5 de maio de 2023 - Bruna Barros

Mesmo assim, a primazia era dos dados objetivos: Édipo matou o pai e se casou com a mãe. É essa transgressão que desencadeia a tragédia, não os acasos e coincidências que conduzem a narrativa.

O primado do relato sobre o real começou nos anos 1960, na França. Foi quando o semiólogo Roland Barthes publicou "Análise Estrutural da Narrativa".

Ele escreveu: "Não há, nem nunca existiu em lugar algum, um povo sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas".

É por meio de enredos que se fizeram e se fazem lendas, fábulas, romances, epopeias, peças, comédias, filmes, novelas, histórias em quadrinhos. Mas elas não estão na raiz da física, da poesia, da matemática, da economia, da química ou da astronomia.

Como em larga medida a experiência do "Homo sapiens" se mescla à do "homo narrans", Barthes concluiu: "internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida".

É uma extrapolação temerária: um rato, uma montanha ou o universo independem dos relatos nos quais figurem. A narrativa não "está aí, como a vida". Apesar disso, a afirmação peremptória fez florescer uma área de estudos, a narratologia.

O ponto de vista de Barthes talvez tenha prosperado por dois motivos, um milenar e outro histórico.

Milenar –desde sempre, as narrativas organizam e dão sentido ao que é desorganizado e não tem sentido: a vida.

Histórica –nos anos 1960, entraram em parafuso grandes narrativas escatológicas (o catolicismo) e emancipatórias (o socialismo). No seu lugar vicejaram mininarrativas egóticas ou grupais, identitárias ou new age, de autoajuda ou autoficção. Pequenas empresas geraram grandes negócios.

Um pioneiro da narratologia nos Estados Unidos foi Peter Brooks, crítico literário e professor em Yale. Ele lançou em 1984 "Reading for the Plot", livro que alardeou a "teoria francesa" –Barthes, Foucault, Derrida– nas universidades americanas.

Brooks fez agora um mea culpa em "Seduced by Story: the Use and Abuse of Narrative" (NYRB, 173 págs.), no qual diz que a ênfase da narrativa no discurso público é disruptiva. "Foi como se um filhote que criei tivesse se tornado um predador", escreve.

Não se trata, apenas, da corrupção da história pela estória. Artifício básico da literatura, a narrativa tradicional é sábia. Ela transmite a experiência coletiva, vivida ao longo dos séculos, que é maturada e passada adiante por narradores.

Para Walter Benjamin, o registro da experiência é também individual: "A personalidade do contador de estórias se fixa na narrativa assim como as mãos do oleiro deixam suas marcas num pote de barro".

As narrativas de século 21 não buscam essa paciente feitura de algo útil e sólido, um pote de barro de sabedoria. Predominam as narrativas fabricadas de afogadilho e com objetivos utilitários. Com isso, o discurso racional, baseado no pensamento lógico, é sequestrado por mitologias.

Brooks só vê um recurso para desmontar as lorotas de contadores de estórias como os que farão fuzuê na CPI do 8 de Janeiro: "Precisamos opor a inteligência crítica e analítica às narrativas que nos seduzem a aceitar as ideologias dominantes".

Não será fácil, já que narradores malévolos são escoltados nas CPIs pelo coro de gritões, provocadores e demagogos que fazem da política um circo. Seu objetivo é que tudo acabe em algaravia, pizza, palavrório: numa narrativa que impeça a punição de quem tentou dar um golpe.

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