Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Um conflito de 100 anos entre China e EUA se aproxima

Disputa de Trump pelo domínio vem sendo enquadrada cada vez mais como jogo em que só um pode ganhar

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O desaparecimento da União Soviética deixou um grande vazio. A "guerra contra o terrorismo" foi um substituto inadequado. Mas a China satisfaz todos os requisitos. Para os Estados Unidos, ela pode se tornar o inimigo ideológico, militar e econômico de que muita gente precisa. Por fim um oponente digno.

Foi essa a principal conclusão que extraí nas reuniões Bilderberg deste ano. A rivalidade com a China está se tornando um princípio organizador geral para a política econômica, externa e de segurança dos Estados Unidos.

Que esse seja ou não o princípio organizador para Donald Trump importa pouco. Os instintos básicos do presidente americano são nacionalistas e protecionistas. Outras pessoas se encarregam da estrutura e dos detalhes. O objetivo é domínio pelos Estados Unidos. O meio é controlar a China, ou exclui-la. Quem quer que acredite em que uma ordem multilateral e baseada em regras, nossa economia globalizada, ou mesmo as relações internacionais harmoniosas sobreviverão a esse conflito está se iludindo.

O surpreendente estudo oficial sobre o conflito comercial publicado no domingo pela China serve como prova. O fato –para mim deprimente– é que em relação a muitas coisas as posições chinesas estão corretas. O foco dos Estados Unidos no desequilíbrio em relacionamentos bilaterais é economicamente analfabeto. A posição de que o roubo de propriedade intelectual causou grandes danos aos Estados Unidos é questionável. A proposição de que a China violou grosseiramente os compromissos que assumiu ao ser admitida à OMC (Organização Mundial do Comércio) em 2001 representa um imenso exagero.

Acusar a China de trapacear é uma hipocrisia quando praticamente todas as ações de política externa do governo Trump violam as regras da OMC, um fato admitido implicitamente por sua determinação de destruir o sistema de resolução de disputas da organização. A posição de negociação dos Estados Unidos com relação à China é a de que "força equivale a direito". Isso é particularmente verdadeiro quanto à insistência em que a China aceite os Estados Unidos como juiz, júri e executor de qualquer acordo.

Uma disputa sobre os termos de uma abertura de mercado ou sobre a proteção da propriedade intelectual poderia ser resolvida por meio de negociações cuidadosas. Um acordo quanto a isso poderia até ajudar a China, porque reduziria o poder do Estado e promoveria reformas orientadas ao mercado.

Mas as questões se tornaram complicadas demais para uma solução desse tipo. Isso acontece em parte por conta do rompimento amargo das negociações, e ainda mais porque o debate nos Estados Unidos vem girando em torno de decidir se uma integração com a economia chinesa, liderada pelo Estado, é de fato desejável. O medo quanto à Huawei se concentra na segurança nacional e na autonomia tecnológica. O comércio liberal é cada vez mais visto como uma forma de "negociar com o inimigo".

O relacionamento com a China começa a ser enquadrado como um jogo que só pode ter um vencedor. Declarações recentes de Kiron Skinner, a diretora de planejamento de políticas do Departamento de Estado (posto no passado detido por George Kennan, um dois grandes estrategistas da guerra fria), são reveladoras. Em um fórum organizado recentemente pela New America, ela afirmou que a rivalidade com Pequim "é uma luta com uma civilização e uma ideologia realmente diferentes, e os Estados Unidos ainda não tinham encarado uma situação como essa".

Ela acrescentou que esta seria "a primeira vez que teremos uma grande potência não caucasiana como concorrente". A guerra com o Japão parece estar sendo ignorada. Mas o ponto importante é que ela enquadre o conflito como uma guerra racial e entre civilizações, e assim como um conflito insolúvel. Isso não pode estar acontecendo por acidente. Skinner continua em seu posto.

Outros apresentam o conflito como uma questão de ideologia e poder. Os que enfatizam o primeiro ponto mencionam a retórica marxista do presidente chinês Xi Jinping e o papel reforçado do partido comunista. Aqueles que enfatizam o segundo ponto mencionam o crescente poderio econômico da China. As duas perspectivas sugerem um conflito perpétuo.

Trata-se do mais importante desdobramento geopolítico de nossa era. No mínimo, forçará todo mundo mais a assumir posições, ou a ter de batalhar para manter a neutralidade. Isso é importante. E também perigoso. Acarreta o risco de transformar um relacionamento administrável, ainda que complicado, em um conflito aberto, sem motivo justo.

A ideologia da China não é ameaça para a democracia liberal, ao menos não da mesma maneira que a União Soviética um dia foi. Os demagogos de direita são muito mais perigosos. Um esforço para deter a ascensão econômica e tecnológica da China quase certamente fracassará. Pior, isso fomentaria uma hostilidade profunda da parte do povo chinês. Em longo prazo, as demandas de um povo cada vez mais próspero e bem educado por controle maior sobre a vida pessoal podem sair vencedoras. Mas isso se torna muito menos provável se a ascensão natural da China for ameaçada.

Além disso, a ascensão da China não é causa importante dos males do Ocidente. Estes refletem muito mais a indiferença e a incompetência das elites nacionais. Aquilo que é visto como roubo de propriedade intelectual reflete em larga medida a tentativa inevitável de uma economia em ascensão de dominar as tecnologias do momento. Acima de tudo, uma tentativa de preservar o domínio de 4% da humanidade sobre os demais seres humanos é ilegítima.

Isso certamente não significa aceitar tudo que a China fala ou faz. Pelo contrário: a melhor maneira de o Ocidente lidar com a China é insistir nos valores duradouros da liberdade, democracia, multilateralismo baseado em regras, e cooperação internacional. Essas ideias fizeram de muitos povos do planeta partidários dos Estados Unidos, no passado. E continuam a cativar muitos chineses, hoje. É bastante possível sustentar essas ideias, e de fato insistir nelas com muito mais força, e ao mesmo tempo cooperar com uma China ascendente nos aspectos essenciais, como a proteção da natureza, do meio ambiente, do comércio e da paz.

Uma mistura de competição e cooperação é o caminho certo para avançar. Uma abordagem como essa quanto à administração da ascensão da China deve incluir cooperação estreita com aliados e simpatizantes, e um tratamento respeitoso à China. A tragédia no que vem acontecendo agora é que o governo americano está ao mesmo tempo lançando um conflito entre duas potências, atacando seus aliados, e destruindo as instituições criadas sob liderança dos Estados Unidos no pós-guerra. O ataque atual à China representa a guerra errada, travada da maneira errada e no terreno errado. Mas infelizmente, é esse o lugar em que estamos agora.
 
Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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