Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times União Europeia

O 'jogo do covarde' do Reino Unido no brexit vai acabar mal

Ao ameaçar repudiar acordo com UE, país mina credibilidade como parceiro confiável

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Boris Johnson ganhou a eleição geral de 2019 com a promessa de que completaria o brexit. Mas ele não está completo. Em vez de estabilizar-se, as relações pós-divórcio estão piorando. Não é de surpreender que elas sejam mais frágeis onde as responsabilidades continuam compartilhadas. A pesca é um desses campos de disputa. Mas o mais perigoso, de longe, é a Irlanda do Norte.

Em outubro de 2019, Johnson declarou que tinha chegado a "um grande novo acordo". Agora ele gostaria de rasgá-lo. Isso é característico, infelizmente. Mas é perigoso não só para o Reino Unido, mas também para a União Europeia e o Ocidente em geral.

Em certo sentido, o brexit não poderia estar "completo" agora. O fim de um casamento transforma as perspectivas dos parceiros no futuro. Se tudo o mais continuar igual, o parceiro mais dependente do ponto de vista econômico também sofrerá mais.

Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido - Matt Dunham - 22.out.2021/AFP

Em sua Previsão Econômica e Fiscal do mês passado, o Escritório para Responsabilidade Orçamentária (OBR na sigla em inglês) concluiu que "desde novembro de 2016 nossas previsões supuseram que as importações e exportações totais do Reino Unido acabarão ficando ambas 15% mais baixas do que se continuássemos na UE. Essa redução da intensidade do comércio orienta a redução de 4% em produtividade potencial em longo prazo que supomos que acabará resultando de nossa saída da UE". Para colocar isso em contexto, é o dobro do custo estimado em longo prazo da Covid e, em valores atuais, 80 bilhões de libras (R$ 594 bilhões) em um ano.

Até agora, os resultados estão próximos das previsões anteriores. O comércio do Reino Unido com a UE está encolhendo em relação ao que teria acontecido de outro modo. Isso não será compensado por outros comércios, e imporá custos perpétuos.

Mas poderia ser muito pior. Suponha que os negociantes e investidores, estrangeiros e domésticos, concluíssem que não podem confiar na estrutura negociada para as relações entre o Reino Unido e seus parceiros econômicos mais importantes. Ainda pior, suponha que a credibilidade do governo britânico como parceiro seja destruída. Então os prejuízos para o Reino Unido poderiam superar substancialmente os indicados pelo OBR. Eles também iriam muito além dos custos meramente econômicos.

Quão realistas são esses temores? Em um pronunciamento no fim de semana, o ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, sugeriu que a UE poderia repudiar seu acordo comercial pós-brexit se o governo britânico seguisse com sua ameaça de suspender partes do acordo sobre a Irlanda do Norte. Ele advertiu que o Reino Unido estava forçando um acordo que sabia ser impossível. O Reino Unido de fato está pressionando por uma mudança radical. Em um discurso combativo em outubro, o galinho de briga de Johnson, lorde David Frost, afirmou: "A UE dizer agora que o protocolo —elaborado com extrema pressa em um momento de grande incerteza— nunca poderá ser aperfeiçoado, quando está evidentemente causando problemas tão significativos, seria um erro de julgamento histórico".

Essa é a linguagem do repúdio. Particularmente notável é a implicação de que esse protocolo —conscientemente e, deve-se supor, sabidamente acordado pelo próprio Johnson dois anos atrás— era de certo modo "incerto" e foi redigido em "extrema pressa". Na verdade, suas consequências eram bastante previsíveis. É por isso que Theresa May, sua antecessora, rejeitou a ideia de separar a Irlanda do Norte do resto do Reino Unido dessa maneira. Se Johnson não entendeu o que estava assinando, ele foi incompetente. Se entendeu, mas não tinha a intenção de respeitar o acordo que assinou, foi desonesto.

Isto não é afirmar que a administração desse protocolo não poderia ser aperfeiçoada. A Comissão Europeia fez propostas importantes sobre o assunto. Mas a insistência do Reino Unido de poder se desviar dos padrões europeus em produtos alimentícios certamente criaria problemas em seu comércio com a Irlanda do Norte. E de fato criou.

Agora, em busca de uma mudança radical no acordo que assinou conscientemente, o governo britânico propõe tomar medidas de "salvaguarda". Tais medidas são permitidas sob o Artigo 16 do protocolo. Mas, explica o último, tais "medidas devem se restringir com relação a seu alcance e duração ao que for estritamente necessário para remediar a situação".

O desejo do Reino Unido de retirar o papel do Tribunal de Justiça Europeu de definir a lei europeia que governa o mercado único está longe de "estritamente necessário". Além disso, a UE teria o direito de tomar suas próprias medidas de reequilíbrio em resposta a tal ato pelo Reino Unido. Onde esse ciclo de retaliação entre vizinhos iria terminar, ninguém sabe.

O visão otimista é que esse "jogo do covarde" acabará, como já aconteceu antes, com um acordo remendado: a UE cederá um pouco e o Reino Unido não conseguirá tudo o que quer. Mas há dificuldades óbvias nessa visão alegre.

A primeira é que tentativas intermináveis de negociar a parte mais contenciosa da retirada azedou as relações e, ainda pior, continuará a fazê-lo: afinal, a Irlanda do Norte, a UE e o Reino Unido não vão desaparecer.

A segunda é que tal manobra fatalmente mina a confiança em seus compromissos de que todo governo precisa. O Reino Unido não pode mais esperar se safar com a reputação de ser a "Albion traiçoeira".

A última é que o "jogo do covarde" deve acabar em um choque exatamente do tipo sugerido por Coveney. Talvez isso não aconteça desta vez. Mas parece cada vez mais que o governo britânico continuará nisso até que a UE se dobre totalmente ou o choque aconteça. Em longo prazo, a última parece muito mais provável.

Então, o que acontece se as partes centrais dos acordos entre o Reino Unido e a UE desmoronarem? Os efeitos econômicos certamente serão danosos. Mas muito pior seria a ruptura da confiança entre democracias líderes e vizinhos eternos em um momento de enormes desafios para esses países. São riscos que ninguém são ousaria correr. Esse "jogo" perigoso precisa parar. Temos de seguir em frente.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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