Roberto Marinho tinha seis anos quando foi agredido por um colega de escola, um certo Mongaguá, com um soco forte, que o derrubou. É a "pancada inaugural", como diz o título do primeiro capítulo do recém-publicado perfil biográfico do empresário, de autoria de Eugênio Bucci ("Roberto Marinho", Companhia das Letras, 334 págs., R$ 84,90).
"No dia em que foi a nocaute, o aluninho do Paula Freitas se transformou e entendeu de uma vez o sentido da palavra coragem", registra Bucci. O episódio merece seis páginas do livro e é retomado no último parágrafo do capítulo final, coroando a narrativa. "Foi a memória oculta, inconfessa, da criança nocauteada que o impeliu para o combate".
Leonencio Nossa, o principal biógrafo de Marinho ("O Poder Está no Ar") não dá maior atenção ao assunto —"o aluno se tornou um criador de casos e brigas com os colegas", resume. Pedro Bial, o biógrafo oficial ("Roberto Marinho"), dedica 11 linhas ao caso, registrando o soco e a revanche, cerca de 15 anos depois.
A fonte dos três autores são anotações que Marinho pôs no papel pensando em escrever uma autobiografia ("Condenado ao Êxito"). Falando de si na terceira pessoa, o empresário anotou que, um dia, em Copacabana, reconheceu o colega que o agredira.
"Desferiu em seguida uma série de socos e chutes, aplicados com furor e técnica, que deixou o tal sujeito arriado, quase desfalecido na calçada. Tudo isso sem dizer uma palavra. Quando se deu por vingado e recompensado, afastou-se sem pressa."
Bucci vislumbra: "Bater foi prazeroso. Mongaguá despencou. De alma lavada, a criança indefesa do colégio Paula Freitas tinha se transformado num rapaz alinhado, namorador, bon vivant, vaidoso e violento. Já não tremia na hora do coice". Diferentemente de uma biografia, que busca o retrato mais completo possível, o perfil costuma ser uma tentativa de propor um desenho a partir da escolha de alguns traços que o autor julga definidores. Não cabe tudo.
Bucci, creio, foi bem-sucedido no seu esforço. Certamente será criticado por deixar de lado ou minimizar alguns problemas essenciais, mas enfrentou tópicos sensíveis, como o impulso que a Globo registrou durante a ditadura militar e a fidelidade de Marinho ao regime até o fim. Assim como a sua habilidade em continuar influindo e se beneficiando do poder na transição para a democracia.
Não há muita novidade factual em relação aos livros publicados antes, mas Bucci apresenta reflexões originais. Ao tratar da grave crise que levou à moratória da empresa, em 2002, o autor mostra como os filhos de Marinho, então no comando, agiram preocupados em preservar a credibilidade do grupo.
"Nesse ponto, os filhos se diferenciavam do pai. O velho Roberto Marinho não tinha uma compreensão elaborada desse conceito abstrato que leva o nome de credibilidade. Para o pai, o segredo do sucesso da Globo passava por um bom trânsito com o poder político e uma dose superior de arte e engenho para agradar a classe média."
Compreensivelmente restrito ao personagem, que morreu, aos 98 anos, em agosto de 2003, Bucci não avança na análise sobre a Globo pós-Roberto Marinho. Mas não deixa de ser sugestivo que tenha dado tanta importância ao episódio do nocaute no colégio.
Num ambiente de disputa global, o maior grupo de comunicação do país hoje parece uma criança pequena diante de alguns rivais muito maiores. Os desafios são complexos, e o cenário não parece favorável à empresa brasileira. Coragem certamente será uma qualidade indispensável a Paulo Marinho, neto de Roberto Marinho, que assumirá a presidência da empresa em 2022.
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