No início da década de 1990, o ator Paul Newman, morto em 2008, encomendou ao amigo Stewart Stern, roteirista de filmes como "Juventude Transviada", que escrevesse a sua biografia. Stern gravou dezenas de entrevistas, mas Newman desistiu do projeto antes que ele começasse a escrever o livro.
Perto do fim da vida, o ator colocou fogo nas fitas gravadas por Stern. Mas, não se sabe por quê, preservou as transcrições —cerca de 15 mil páginas. Em 2007, dias depois que a atriz Joanne Woodward foi diagnosticada com Alzheimer, Newman soube que estava com um câncer terminal. Morreu no ano seguinte e nunca mais se falou da biografia.
Em 2019, as filhas do casal encontraram as transcrições escondidas na lavanderia no porão da casa da família em Westport, no estado americano de Connecticut. E decidiram fazer algo em homenagem à mãe, ainda viva.
Encarregado de realizar um documentário com base neste material, mas isolado em casa por causa da pandemia de coronavírus, o ator Ethan Hawke teve a ideia brilhante de convidar atores para lerem as transcrições das entrevistas em gravações feitas por Zoom.
George Clooney encarnou Newman, enquanto Laura Linney leu as falas de Woodward. Vários outros atores, roteiristas e diretores participam da série lendo depoimentos de figuras importantes na vida do casal. As falas se sobrepõem a cenas de filmes dos dois, cuidadosamente escolhidas, além de imagens antigas, públicas e privadas, do casal.
O resultado, imperdível, é uma série em seis episódios, "As Últimas Estrelas do Cinema", ou as últimas estrelas de cinema, disponível na HBO Max. Ainda que muitas vezes pareça realmente uma "canonização festiva" do casal, como disse Richard Brody na New Yorker, é um documentário complexo, com muitas camadas.
Para quem vive no universo artístico, ou admira este mundo, "As Últimas Estrelas do Cinema" oferece um curso compacto sobre nuances da arte da interpretação. Tanto Newman quanto Woodward estudaram no Actors Studio, em Nova York, sob a batuta de Lee Strasberg e o seu famoso "método".
Cinco anos mais nova que o marido, Woodward sempre foi considerada mais talentosa do que ele. Em 1957, ainda na primeira fase da carreira, ganhou o Oscar de melhor atriz por "As Três Faces de Eva". A certa altura, reduziu o ritmo de trabalho para cuidar dos filhos, sendo injustamente relegada a um lugar menor, enquanto Newman se transformava num tipo icônico de Hollywood —foi indicado ao Oscar dez vezes e só ganhou por "A Cor do Dinheiro", em 1987.
A série aborda, sem passar pano, o alcoolismo de Newman e expõe claramente a culpa que sentia pela morte, por overdose, do único filho homem, o também ator Scott Newman. Os depoimentos da primeira mulher, Jackie Witte (na voz de Zoe Kazan), são duríssimos, até cruéis, com o ex-marido.
Por outro lado, Ethan Hawke é benevolente com a série de filmes ruins ou caça-níqueis que Paul Newman fez, como "Inferno na Torre", por exemplo, mas não deixa de registrar que são de qualidade duvidosa.
Newman e Woodward foram, ainda, importantes ativistas políticos e doaram centenas de milhões de dólares —com a ajuda da venda de molho de salada Newman— para benemerência.
Mais que tudo, as seis horas da série celebram um casamento de 50 anos, um amor profundo, ainda que enfrentando chuvas e trovoadas, com cumplicidade total, em casa e nos estúdios —fizeram 16 filmes juntos, alguns sob a direção dele.
"As Últimas Estrelas do Cinema" pertence ao subgênero dos "documentários afetuosos", uma categoria em que eu colocaria também o excelente "Em Casa com os Gil", disponível no Amazon Prime Video, série em cinco episódios de 30 minutos cada sobre Gilberto Gil e sua família.
Menos ambicioso e mais complacente do que a série sobre o casal de atores americanos, o programa sobre Gil também transborda afeto e calor, celebrando o talento, a sabedoria e a ascendência do músico sobre a sua prole. Estamos precisando também de séries como essas.
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