Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

A Vila Reencontro é inovadora para enfrentar a questão da população em situação de rua?

Até que enfim a Prefeitura de São Paulo enxergou o óbvio, mas iniciativa tem grandes falhas

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Para alojar provisoriamente moradores em situação de rua, a prefeitura irá construir 350 casinhas de 18 m², com 1.200 leitos, a um custo de R$ 25 milhões, em um térreo municipal de 16 mil m² localizado no Bom Retiro, a 200 metros da estação Armênia do metrô.

Denominado Vila Reencontro, o empreendimento, promovido pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), objetiva alojar, por no máximo de 12 a 18 meses, prioritariamente famílias —com ou sem crianças— e idosos, que estejam vivendo em condição de rua há menos de dois anos.

Como informou a prefeitura, "as novidades do projeto não se restringem a moradias modernas e ao conceito internacional de acolhimento". No espaço, além da atuação da assistência social, estão previstos serviços de saúde e de capacitação profissional, unidades do Descomplica (acesso rápido a serviços do município) e restaurante da rede Bom Prato, do governo do estado.

Como avaliar essa iniciativa? Ela representa uma inovação no âmbito do princípio "housing first" (moradia primeiro, em inglês), internacionalmente reconhecido com mais eficaz para enfrentar a questão da população em situação de rua?

O secretário Carlos Bezerra, em audiência na Câmara Municipal, afirmou que o projeto se insere em uma "necessária remodelação" do acolhimento da população em situação de rua na capital, "ainda baseado nas décadas de 80 e 90, que não respondem à atualidade. Não dá mais para tratar da população em situação de rua como um bloco homogêneo de homens sozinhos dependentes de álcool e com problemas psiquiátricos".

Ufa! Até que enfim a prefeitura enxergou o óbvio, como temos mostrado na coluna diversas vezes, como em "São Paulo virou acampamento de sem-teto e a prefeitura não faz nada".

Depois de mais de dois anos de inoperância, quando a prefeitura não fez nada para impedir o crescimento da população em situação de rua, a gestão Ricardo Nunes (MDB), com grande atraso, está dando prioridade à questão.

Desde o início da pandemia estava clara a necessidade de ser formulada uma estratégia habitacional para evitar o despejo de inquilinos de baixa renda que, frente ao desemprego e queda de renda, estavam ameaçados de ir para a rua, como muitos foram.

O resultado, visível a olho nu, escandaliza os paulistanos: a população em situação de rua cresceu 31% em dois anos, as barracas, 230% e as famílias vivendo nas calçadas, 111%, segundo o censo realizado pela prefeitura.

Para enfrentar o problema, o Programa Reencontro terá três eixos: conexão, que visa criar vínculos e conhecer mais a população em situação de rua; cuidado, que oferece serviços públicos, como acolhimento, inclusão produtiva e digital, 10 mil vagas de Bolsa Trabalho, banheiros e bebedouros públicos; e oportunidade que objetiva criar oportunidades para gerar a autonomia.

Teoricamente, o programa está bem fundamentado e informado pela experiência internacional, adotando, no discurso, o princípio "housing first", desenvolvido inicialmente no Canadá. No entanto, a proposta da Vila Reencontro e a falta de uma estratégia habitacional mostram que ele está longe dessa abordagem inovadora.

A novidade do modelo "housing first" consiste na inversão da intervenção "em escada", predominante em muitos países, inclusive no Brasil, que pressupõe um continuum de serviços: centros de alojamento, programas residenciais de grupo com apoio intensivo e atividades estruturadas, apartamentos de grupo supervisionados e culminando no acesso à habitação independente.

A perspectiva desse modelo é que as pessoas devem desenvolver competências e receber tratamento até estarem aptas para viver de forma autônoma, transitando gradativamente para contextos habitacionais com menos suporte e supervisão.

A avaliação desse modelo, contudo, mostra que, majoritariamente, as pessoas ficam retidas num ponto desse continuum e estacionam, sem saírem da condição de rua.

Ao contrário da intervenção "em escada", o "housing first" coloca o acesso à habitação permanente e individualizada como ponto de partida e não como a última etapa da intervenção, disponibilizando serviços de apoio ajustados às necessidades concretas dos participantes.

Seus princípios baseiam-se no acesso imediato a uma habitação permanente, individualizada e estável (não transitória) para as pessoas saírem das ruas, sem exigir a sua participação prévia num programa de tratamento e reabilitação. A habitação deve estar dispersa e disseminada na comunidade, em zonas residenciais comuns da cidade, sem qualquer diferenciação.

Considera-se a casa o ponto de partida para um percurso de recuperação, autonomia, inclusão social, garantindo o direito de as pessoas viverem de forma independente. As pessoas têm o direito de decidir sobre as suas vidas e escolher onde e com quem querem viver, escolher os serviços que necessitam e preferem. Os apoios devem ser individualizados para a recuperação e inclusão social, para as pessoas participarem da comunidade, como os outros cidadãos.

A Vila Reencontro está longe do modelo "housing first", se aproximando mais da intervenção em escada. É provisória e ao invés de dispersar a moradias em diferentes bairros e na comunidade, gera um gueto, agrupando 350 famílias em uma única área.

É muito melhor do que um albergue, garantindo individualidade, boas condições habitacionais e vários serviços sociais, de acolhimento e saúde. Mas para funcionar adequadamente e não se transformar em um cortiço ou favela, será necessário definir regras rígidas comportamento, de uso do espaço comum, vigilância e controle, gerando conflitos e incompatibilidades.

Os moradores terão um endereço, mas ele será o da "vila da população em situação de rua", levando a uma discriminação que dificultará o acesso ao trabalho. Ademais, atende apenas 3% da população em situação de rua, não modificando o atual quadro da cidade.

A solução arquitetônica e urbanística é desastrosa. Em um terreno muito bem localizado, onde seria possível construir 2.000 unidades habitacionais de 32 m², serão edificadas 350 casinhas de 18m², de baixa durabilidade, a um custo de R$ 4.000 por metro quadrado, superior ao valor da produção de habitação social vertical de excelente qualidade.

É evidente que falta uma estratégia habitacional nesse programa. Apenas apontamos, a seguir, algumas alternativas que deveriam ser trabalhadas:

  1. Para estancar o crescimento dessa população, a prefeitura precisa adotar o Despejo Zero, intercedendo para impedir novas reintegrações de posse e criando um auxílio locação, voltado para os inquilinos de baixa renda que estão em vias de perderem suas moradias.
  2. Para as famílias que, nos últimos dois anos foram obrigadas a viver em barracas nas calçadas, o auxílio locação seria a melhor estratégia para garantir o acesso imediato a uma moradia, dispersa pela cidade. Com um valor suficiente para pagar o aluguel de uma moradia, apoio do serviço social e uma bolsa-trabalho, essas famílias podem rapidamente recuperar sua autonomia e a condição que tinham antes da pandemia.
  3. O auxílio aluguel também poderia ser utilizado para ampliar a alternativa das "repúblicas", que tem dado excelentes resultados, mas que ainda é de pequeno alcance.
  4. Regulamentar e implementar o Serviço Social da Moradia, previsto no Plano Diretor, voltada para grupos específicos, como idosos, mães solo, pessoas com deficiência etc., não exclusivamente em situação de rua. Nesse programa, a moradia é acompanhada de outros serviços sociais, de saúde e de capacitação profissional, voltado para a especificidade do grupo residente.

É louvável que a prefeitura comece a olhar com prioridade a questão da população em situação de rua. Mas é necessário avançar muito para inovar no enfrentamento do problema, sobretudo no que se refere ao atendimento habitacional.

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