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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'A paixão pelo teatro se extinguiu', diz o ator Juca de Oliveira

Aos 84 anos, ele critica efeitos causados pela lei Rouanet entre atores e dramaturgos

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Juca de Oliveira em sua casa, em São Paulo
Juca de Oliveira em sua casa, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress
São Paulo

É uma tarde chuvosa. O ator Juca de Oliveira, 84, aguarda o elevador no térreo do prédio onde mora há quase quatro décadas, nos Jardins, em SP, e abre um sorriso quando ele chega: “Pinduca! Como é que foi lá, Cuca?”, pergunta ao esbarrar com a sua mulher, Maria Luiza de Faro, que havia acabado de voltar após alguns dias na fazenda do casal.

É um terreno em Itapira, que serve como refúgio para Juca e a esposa. “Certa vez, ficamos um ano lá sem voltar pra SP, mas agora não tenho ido por causa da peça”, diz ele. “Por favor, entrem, entrem”, dirige-se cordialmente à equipe de reportagem na porta de entrada de seu apartamento.

“Desculpa! Aqui é bagunçado. Não tem café. Ela [Maria Luiza] chegou agora. Mas tem pinga, uísque.”

O apartamento em tons escuros tem quadros pela parede e antigas esculturas espalhadas pela sala de estar. “Nós somos conservadores, né? Dá para ter uma ideia. A arte moderna, pelo menos a mim, não ataca muito”, afirma o ator.

Sobre uma mesa de centro, junto a dezenas de outros espalhados, havia um livro com fotos da história do Teatro Oficina, idealizado pelo diretor Zé Celso. Mas Juca não lembrava de o ter ali. 

No meio dos exemplares, o roteiro de sua peça mais recente, que fica em cartaz até o fim do ano no Teatro Reinassance, em São Paulo: "Mãos Limpas".

“Essa é uma peça que eu venho escrevendo há algum tempo. Como eu escrevo muito sobre o que está acontecendo, sobre coisas que me apaixonam e que me indignam, me chateiam, fico mudando sempre.”

“Hoje, há um conflito absurdo na sociedade. Como é possível um conflito tão grande, facções se digladiando 24 horas por dia? Então, isso faz parte da sua vida. O ator está permanentemente em contato com a realidade.”

“Só que ao se fixar na realidade, você encara uma variação muito grande. Ela muda tão assustadoramente, que de quando em quando você está rasgando papel, recomeçando. As personagens ficam obsoletas. Você se inspira numa pessoa extremamente honesta. E, de repente, essa mesma pessoa se torna um delinquente. Aí você precisa mudar.”

O texto traz Juca como um ex-advogado que virou traficante desiludido com a Justiça brasileira. O ator Fúlvio Stefanini encarna um senador “da esquerda” envolvido com propinas e que aspira à presidência em 2022.

No desenrolar da história, são citados no palco nomes como os dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, dos também petistas Gleisi Hoffmann e Jaques Wagner, além da jornalista Cristiana Lôbo.

O ministro Sérgio Moro também é lembrado várias vezes —só que de forma positiva. Quando Juca ameaça revelar os esquemas de corrupção do senador interpretado por Fúlvio, ele telefona para o ministério da Justiça à procura do ex-juiz.

“Duas coisas que me indignam muito são a falta de caráter e a falta de integridade. De um lado, elas me provocam uma irritação muito grande. Por outro lado, o homem defeituoso é matéria de comédia. A comédia excita o cérebro. Leva você ao raciocínio, à reflexão. E a personagem passível de se tornar uma comédia é a que tem defeito”, reflete. “Então nós temos personagens à vontade no Brasil para fazer comédia.”

Juca contrapõe a comédia à tragédia. Ilustra a comparação com esculturas —expostas próximas à porta de entrada do apartamento— de duas das nove musas da criação artística segunda a mitologia grega: Melpômene [tragédia] e Tália [comédia].

Cita o trágico conto de Édipo, também da mitologia grega. Sem saber, o personagem matou o pai e casou-se com a mãe biológica. Ao se dar conta, optou pela autopunição. “Qual é a diferença do defeituoso para o homem íntegro? O Édipo vai atrás para reparar os erros. O outro, não.”

“Eu estou dizendo isso porque me baseava há bastante tempo no episódio de um político famoso que estava indo muito bem com o Brasil naquela época, mas de repente surgem ideias de corrupção, de que pessoas do próprio governo estariam envolvidas em maracutaias e propinas e tudo.”

“Então, o jornal noticiou que esse chefe de Estado iria investigar porque estava preocupadíssimo. Na minha cabeça, estava vendo ali o Édipo. Mas não [risos]. Não aconteceu nada, e nós continuamos”, ri novamente. “Esse personagem se torna um homem de comédia. Qualquer coisa que essa pessoa diga é engraçada, porque é totalmente falsa.”

O raciocínio é interrompido por um barulho de reforma que vem do apartamento do andar de baixo. “A regra é que eles comecem essas obras depois das 10h. Mas hoje, começaram às 9h30. Me irritei muito. Desci lá e falei para os engenheiros: ‘Escuta, isso é um absurdo’. Falei tudo, mas não adianta nada.”

“Voltando ao teatro…”, diz ele, para completar: “A peça não tem lei Rouanet”.

O mantra é reforçado antes de as cortinas abrirem. Ao toque dos três sinais que antecipam o início do espetáculo, um narrador avisa: “Esta peça não tem nenhum dinheiro público”.

“É que não há bilheteria com a lei Rouanet. Não havendo bilheteria, você faz o espetáculo rapidamente enquanto você tem aquele dinheirinho ali. Dá um pouquinho para o ator, um pouquinho para os técnicos, para o empresário, até que você gasta todo o dinheiro e tira de cartaz.”

“E o principal é que o teatro é feito com paixão. Há um grupo que se apaixona por um texto junto. E esse grupo persegue o sucesso, a perfeição. A paixão pelo teatro se extinguiu. Ninguém mais tem. As peças são medíocres. Fazem um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Tem atores que vão lá, se disponibilizam por 20 dias e depois saem. É uma loucura”, desabafa.

“Claro que eu estou me referindo ao teatro profissional”, pondera. “Não estou me referindo a teatros amadores, que necessariamente precisam do apoio.”

“Mas a verdade é que nós, atores, somos uma quadrilha. Após a profissão surgir, na religiosidade, começamos a ser expulsos da Igreja, e esse sentimento de marginalização formou um misticismo que une a classe, que a torna parecida com uma irmandade”, reflete.

E as musas Melpômene e Tália, que também viraram estátuas na fazenda de Itabira, regem essa união da classe artística, segundo Juca. “Temos uma função social como atores, essa necessidade de você comunicar alguma coisa, de melhorar o homem, eliminar o desafeto, o desamor.”

“E precisamos entrar sempre no afeto, na solidariedade. O ator é solidário. A pré-condição para você ser ator é barrar qualquer preconceito. Por uma razão muito simples: você tem que ter, dentro da sua alma, espaço para qualquer personagem. De Hitler a Jesus Cristo. E isso dá uma rejuvenescida.”

Aos 84, ele tem uma certeza: “Não se pode parar”. “Em Itapira, eu tinha amigos de beber pinga, pescaria, aquela coisa. E todos da minha idade que pararam de trabalhar, morreram. Os que se aposentaram e arranjaram outro emprego estão lá tomando a pinguinha.”

Antes da despedida, Juca pergunta de novo ao repórter: “Tem certeza que não quer um golinho de pinga?”.

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