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'A arte anda inacessível; vamos recuperar o tempo perdido', diz Regina Boni

Marchande reabre sua galeria São Paulo, agora com o sobrenome Flutuante, e conta sobre seus primórdios, quando vestiu a nata da MPB nos anos 1960

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A marchand Regina Boni em sua casa, em São Paulo

A marchand Regina Boni em sua casa, em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Regina Boni, 78, nunca imaginou que seria uma marchande. Seu primeiro negócio, ainda nos anos 1960, foi a loja e ateliê de roupas Ao Dromedário Elegante, na rua Bela Cintra, zona sul de São Paulo. Essa história começa na cacharrel amarela (sob paletó marrom) que Caetano Veloso usou ao defender a canção “Alegria, Alegria”, no festival da Record de 1967.

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Regina havia conhecido a galera da MPB em um almoço na casa de Chico Buarque em 1966. Se deu bem com todo mundo, ficou íntima de Dedé, mulher de Caetano, e de Gal Costa e até teve um caso com Toquinho, ela conta.

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Quando Caetano subiu ao palco com aquela cacharrel, Regina estrilou: “Mas que careta! Essa roupa não tem nada a ver com a linguagem de sua música”. Dedé também foi rápida na resposta: “Se está criticando tanto, por que não faz o figurino?” “Eu? Uma intelectual fazendo roupa? Não!” “Você sim, vai desenhar!”

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No ano seguinte, quando Caetano subiu para defender a música “É Proibido Proibir”, envergava uma roupa de plástico preta embaixo, verde em cima, e um colar repleto de dentes de javali. Foi o estopim para que Regina passasse a vestir Gal, Gil e até Roberto Carlos. “Desenhava os croquis para reforçar a linguagem dos artistas. Quando abri a loja, o estoque de seis meses foi vendido em duas semanas.”

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O período efervescente foi interrompido pelos ventos da ditadura que comandava o país. Certa manhã, indo para a psicóloga, Regina foi cercada por três carros, retirada de seu automóvel e tomou uma surra. “A TFP [Tradição, Família e Propriedade] chamava minhas roupas de sensuais demais, imorais. Depois desse susto, surgiram telefonemas. Me diziam que eu tinha tantas horas de vida, que iam navalhar minha cara ou que sequestrariam meus filhos.”

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Regina levou a família para um sítio na Granja Viana, zona oeste, onde seus jardineiros capinavam a grama armados, e só saiu de lá cinco anos depois. “Todo mundo foi embora do Brasil, não havia mais como trabalhar. por aqui” E ela se foi também, para passar um ano no Marrocos e três e meio em Paris.

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Quando voltou, abriu a galeria São Paulo e se tornou uma das marchandes mais bem-sucedidas do país. Agora, se prepara para inaugurar seu novo espaço, a galeria São Paulo Flutuante, na Barra Funda, zona oeste da capital paulista, em fevereiro de 2021.

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“Flutuante porque a ideia é não ter um espaço fixo mesmo. Abrimos a galeria no início de 2019 na rua Estados Unidos [na zona sul] e estávamos prontos para inaugurar o novo local em março de 2020, quando chegou a pandemia. Agora, a data é 2 de fevereiro, dia de Iemanjá”, conta ela.

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A primeira mostra, chamada “O Templo do Cachorro Azul”, terá obras exclusivamente de seu sócio na empreitada, o artista Manu Maltez. “Sempre quis pintar uma igreja, ou um templo. Foi essa a abordagem que tive para a galeria, pintando do chão ao teto”, conta Manu, que também exibirá esculturas e pinturas além do próprio espaço.

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A escolha do galpão de 300 metros quadrados na Barra Funda também teve o dedo do artista paulistano. “Eu estava pensando na praça Vilaboim ou algo assim quando o Manu falou para a gente fugir disso e ir para onde a cultura está acontecendo.” Além do novo endereço físico (r. Brigadeiro Galvão, 130), a galeria também está com uma plataforma de vendas pela internet, com obras de 17 artistas que partem de R$ 500.

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No site, abaixo do logotipo da galeria, há uma inscrição que dá a letra: “Desde 1982 acreditando na originalidade e permanência da arte brasileira”. Foi naquele ano que Regina se transformou em marchande, após a temporada em Paris, na França, aprendendo o ofício na galeria de sua amiga Ceres Franco.

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“O métier aqui era muito atrasado naqueles tempos. O marchand brasileiro não comprava, não alardeava seus artistas, não cultivava os colecionadores”, lembra Regina. “Roubei uns artistas da Luisa Strina e inaugurei a galeria São Paulo na mesma rua Estados Unidos onde a Flutuante estreou em 2019. Na verdade, a Luisa deixou eu tomar alguns nomes dela”, diverte-se hoje.

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A marchande, no entanto, teve que superar três obstáculos antes de deslanchar. Em primeiro lugar, seu sobrenome, que veio de seu ex-marido José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni da TV Globo. “Sou muito grata ao Boni por ter me apoiado em tudo o que fiz”, diz Regina. Os dois se casaram em 1958, quando ela tinha apenas 16 anos, e tiveram dois filhos, o Boninho, diretor da emissora, e Gigi, que trabalha com exportações.

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O casamento, no entanto, durou apenas “três anos e meio”, ela lembra. Mas a amizade seguiu e, quando Regina abriu sua galeria, foi imediatamente identificada como se fosse “da Globo”. Quando superou essa desconfiança inicial, os clientes esbarraram em dois outros problemas. A arte propriamente dita e o preço.

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“Nos anos 1980, o que se vendia em São Paulo era a arte moderna. Eu trouxe uma nova proposta, a arte contemporânea, e ela não foi imediatamente bem-recebida”, conta. A arte moderna vinha da virada do século 19 para o 20, enquanto a contemporânea era muito mais moderna que a moderna. Era o que estava se fazendo naquele momento, e seus artistas ainda não eram reconhecidos como grandes nomes.

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Regina também se recusava a vender aquela arte estranha e diferente a preço de banana. A salvação veio na forma de um único colecionador. “O Gilberto Chateaubriand passou a comprar comigo, e ele vinha comprar todo mês, o que permitiu a sobrevivência da São Paulo nos dois primeiros anos. Depois disso, quebramos a resistência.”

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A São Paulo durou até meados dos anos 2000 e, em seus vinte anos de existência, foi a responsável por revitalizar o mercado brasileiro. Com uma exposição nova todo mês, seus catálogos eram disputadíssimos, sejam os de artistas estrangeiros que chegavam pela primeira vez ao país, sejam os referentes aos inúmeros novos nomes que lançou.

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Nos últimos 15 anos, Regina trabalhou no mercado secundário, “venda entre colecionadores”, ela explica. Mas, quando se aproximou de seu atual sócio Manu Maltez, viu que era hora de se movimentar de novo. “As galerias andam inacessíveis, a arte anda inacessível. Precisamos recuperar o tempo perdido. É essa a ideia da São Paulo Flutuante”.

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