Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Descrição de chapéu Coronavírus

O governo só enterra o Zé Gotinha se for muito burro, diz criador do personagem

Darlan Rosa diz muita gente já fez perversidades com o mascote e critica desenho dele com fuzil

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O ‘pai’ do Zé Gotinha diz que o seu filho está vivo e sempre reaparece. “Vários governos desapareceram com ele em algum momento”, afirma o mineiro Darlan Rosa, autor do personagem criado em 1986. “O Zé Gotinha é um sobrevivente.”

O paradeiro do mascote da vacinação brasileira virou assunto na internet depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva perguntou sobre ele em seu pronunciamento na quarta (10). “Achei oportuna a cobrança. O Zé estava mesmo esquecido”, avalia Rosa.

No discurso, Lula disse: “Quando veio a H1N1, eu era presidente. A gente vacinou 80 milhões de brasileiros em três meses. Esse país tem um sistema de saúde que sabe fazer isso. Cadê o nosso querido Zé Gotinha? O Bolsonaro mandou embora, porque pensou que era petista. Não era. Ele era suprapartidário. Um humanista.”

Rosa defende que a sua criação não é petista, bolsonarista —e nenhum tipo de governista. “Eu ficaria muito triste se visse a imagem do Zé Gotinha associada a qualquer governo”, conta. “Não pode politizá-lo. Ele pertence ao povo.”

“O Zé Gotinha é um personagem muito querido, um patrimônio. O governo só vai enterrá-lo se for muito burro.”

Segundo o próprio autor, o traço descomplicado do boneco visou a sua fácil propagação. “Desenhei de maneira simples para que qualquer enfermeira pudesse fazê-lo”, afirma ele.

“Tanto que as pessoas fazem uns Zé Gotinhas estapafúrdios”, diz o artista, lembrando caso recente no qual uma foto de um homem vestido do personagem virou assunto em sites estrangeiros porque a fantasia lembrava o traje do grupo racista americano Ku Klux Klan.

“Foi um bate-boca no Twitter. Resolvi entrar na dança e falar que nunca houve relação [entre o Zé e a KKK]. E que com certeza aquele em específico foi feito por falta de recurso ou por algum extremista, porque já vi muita gente fazer coisa perversa com o Zé Gotinha.”

Na sexta (12), o deputado Eduardo Bolsonaro postou no Twitter um Zé Gotinha com uma seringa em forma de fuzil. “Nossa arma é a vacina!”, escreveu o parlamentar. “Triste”, diz Rosa sobre o desenho.​ É uma imagem terrível uma arma na mão do Zé Gotinha", disse ele à coluna Painel.

Há 35 anos, Darlan foi contratado pela Unicef para criar a marca da campanha de erradicação da pólio no Brasil. Publicitário, foi escolhido por ter experiência na criação de campanhas de conscientização e por ter trabalhado em um programa infantil na TV.

“Quando isso [projeto da pólio] caiu na minha mão, pensei: dá uma campanha maravilhosa. Não vou fazer só uma logomarca. Aí eu fiz o Zé Gotinha, que até então não tinha nome.”

No começo, houve resistência do governo, lembra ele. “As campanhas [de imunização] eram na base do terrorismo. Houve receio que se mudasse [para algo lúdico] e que não desse certo”. Ele então propôs testar a recepção do personagem pelo público com um concurso para nomeá-lo.

“Houve uma avalanche de cartas. A maioria das crianças propôs o nome de Zé Gotinha”, segue o mineiro, que lembra que o grande apelo venceu a resistência de batizá-lo com aquele nome —o presidente do Brasil na época era um José, o Sarney.

Para manter o mascote vivo depois da eleição de Fernando Collor de Mello, Darlan criou situações para identificá-lo com o novo presidente. “Ele [Collor] tinha um vídeo de propaganda em que aparecia dirigindo um Mirage como copiloto, na selva ou lutando caratê. Ele tinha esse negócio de machão, que parece com o atual presidente”, lembra.

“Fizemos um vídeo com o Zé Gotinha fazendo o que o Collor fazia: pilotando avião, fazendo embaixadinha. Para a nossa surpresa, ele convidou o Zé Gotinha para subir a rampa do Planalto. Deu uma força impressionante ao personagem!”

Rosa sorri ao recordar de quando Zé Gotinha ignorou um cumprimento do presidente Jair Bolsonaro, em dezembro. Era o lançamento oficial do plano nacional de imunização contra o coronavírus. “O Bolsonaro estendeu a mão e ele [o trabalhador que se vestia de Zé] fez um joinha [risos]. Aquilo foi um momento magnífico”, brinca. “Não tenho a menor simpatia por esse governo, então achei bom.”

Bolsonaro ao lado do personagem Zé Gotinha no lançamento da plano nacional de vacinação contra a Covid-19
Bolsonaro ao lado do personagem Zé Gotinha no lançamento da plano nacional de vacinação contra a Covid-19 - Pedro Ladeira/Folhapress

Mas, segundo o artista, o ocorrido se deve à limitação do campo de visão de quem veste a fantasia do personagem. “Quem está dentro do boneco vê por uma fresta na boca [do mascote]. Tem que ficar alguém atrás [do boneco], igual a um ventríloquo, para narrar o que está acontecendo.”

Rosa nasceu em Coromandel (MG) e é o segundo de oito filhos da união de um marmoreiro e de uma dona de casa. Trabalhou no ofício do pai até os 18 anos, decorando túmulos e ladrilhos. Sempre quis ser artista, e montava esculturas com peças de um ferro-velho em frente à casa em que cresceu.

“Nunca estudei arte, mas o meu desenho, aos 11 anos, era o de um adulto”, diz. “Tinha a habilidade de desenhar de memória. Eu via uma menina, queria namorá-la, desenhava ela e depois dava o retrato de presente. Só que, quando eu tinha 15 anos, minha cara era de dez. Aí a menina agradecia, mas me dava um fora [risos]. Quem ia querer sair com um menino de dez anos, né? Hoje eu aproveito isso, porque estou com 74 anos e parece que tenho menos. É o que dizem.”

Em 1967, mudou-se para Brasília, onde vive com a mulher, a educadora Maria Célia, com quem ele é casado há 52 anos e tem quatro filhos, que já lhe geraram cinco netos. Na capital, foi servidor público e trabalhou como apresentador no programa “Carrossel”, da TV Brasília, onde era o Titio Darlan. Na atração, ele contava histórias infantis enquanto desenhava —com as duas mãos ao mesmo tempo.

“Quando eu visitava escolas pra contar histórias, tinha que entrar e sair escondido, porque os meninos juntavam em mim. Eu era um ídolo”, lembra. “Muita gente é artista hoje porque assistia ao meu programa.”

Rosa conversou com a coluna por vídeo, de seu ateliê, na quinta (11). Era fim da manhã e ele já tinha andado de bicicleta por 30 quilômetros, rotina que diz manter diariamente —atualmente, com máscara e longe de aglomerações.

O artista Darlan Rosa recebe a primeira dose da vacina contra a Covid-19
O artista Darlan Rosa recebe a primeira dose da vacina contra a Covid-19 - Raul Spinassé/Folhapress

Naquele dia, ele foi ao drive-thru para a imunização de pessoas em sua faixa etária. “Foi emocionante”, diz. “Tira um pouco da agonia. Mas mesmo com vacina, tem que ficar de tocaia. Esses dois anos foram perdidos.” Rosa e a mulher adotam o isolamento desde março de 2020. “A gente tinha uma vida social intensa. Em julho já estávamos em parafuso.”

“Não gosto de ver os membros do governo sem máscara enquanto eu estou há um ano sem sair de casa”, diz ele. “Não é que esse governo não está usando o Zé Gotinha. Ele não está vacinando, né?”, questiona. “Eu estou com muito medo [da Covid-19], principalmente agora, que se adoecer não tem mais hospital.”

“Fique vivo e espere a vacina. É isso o que devemos fazer.”

Hoje ele se dedica às artes plásticas. Esculturas e pinturas suas podem ser vistas no Centro Cultural Banco do Brasil, em casas e em prédios governamentais e comerciais da capital federal e em outros países.

Rosa vê paralelo entre a sua obra como escultor e Zé Gotinha. “Todo o meu trabalho escultórico é lúdico. Onde tem esculturas minhas, que são vazadas, as crianças querem entrar nela”, diz. “Curto esse mundo infantil. Não deixei a minha criança ir embora.

“A gente vem para essa Terra com uma missão. A arte é o meu prazer, um deleite. Nunca quis fazer dela uma coisa comercial”, segue. “Acho que já cumpri a minha missão fazendo o Zé Gotinha. Tenho o maior orgulho. Penso na quantidade de pessoas que ele salvou. A melhor coisa que fiz na minha vida foi esse personagem.”

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