Mônica Bergamo

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O semipresidencialismo no Brasil é um salto no escuro, diz Joaquim Barbosa

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal afirma que tentar mudar o regime de governo é uma irresponsabilidade, diz que o Congresso vem tentando usurpar prerrogativas da Presidência da República e acredita que o atual regime de governo brasileiro tem condições de frear eventuais aventuras autoritárias

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O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa quebrou um silêncio de quatro anos sem dar entrevistas para conversar com a coluna sobre a possibilidade de adoção do semipresidencialismo no Brasil.

Ele vem acompanhando o debate com preocupação e contrariedade. Acredita que mudar o regime de governo para combater crises é uma “aventura” e que os paralelos feitos com o sistema francês não fazem sentido no Brasil. Lá, afirma ele, o semipresidencialismo foi adotado para corrigir um sistema parlamentarista que era uma “balbúrdia”.

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O ex-ministro do STF Joaquim Barbosa participa de reunião em Brasília  - Pedro Ladeira - 19.abr.2018/Folhapress

Barbosa defende o presidencialismo e diz que o sistema, adotado no Brasil há mais de um século, vem sendo aprimorado. Conferiu estabilidade por longo período ao país —e tem o condão de contornar crises mais graves, como uma eventual aventura autoritária do atual governo.

O debate sobre o semipresidencialismo ganhou corpo recentemente, com apoio de ministros do Supremo Tribunal Federal como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, de intelectuais e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Por que o senhor está contrariado com o debate sobre a adoção do semipresidencialismo no Brasil? Como você vai mudar de uma hora para a outra um sistema [o presidencialismo] que vem sendo aplicado há 130 anos no país, e trocar por algo que não se conhece? Eu acho isso muito irresponsável. Por isso me dispus a falar sobre esse tema.

O senhor vê problemas no sistema, ou acredita apenas que ele é inapropriado para o Brasil? Eu conheço o semipresidencialismo porque vivi na França. Fiz uma parte essencial da minha formação naquele país. Vi funcionar e o acompanho há 35 anos. Conheço, portanto, as suas virtualidades e os seus defeitos.
Eu não sou contra o semipresidencialismo. Mas acho que não se está levando em conta o fato de que ele é fruto de circunstâncias históricas específicas à França.

Quais são elas? O semipresidencialismo foi criado em reação à disfuncionalidade do sistema parlamentar francês. Foi uma resposta que se buscou para corrigir um sistema que não funcionava e que causava crises seguidas.

A França adotou o sistema parlamentarista em 1871. De 1871 até 1940, início da Segunda Guerra Mundial, o país teve 120 gabinetes, 120 governos! Terminada a guerra, teve 24 governos de 1946 a 1958.
Era uma queda de governo a cada seis meses, por qualquer motivo. Se o governo não conseguisse aprovar um projeto de lei, caía. Às vezes a própria maioria do governo derrubava o governo. Ou seja, era uma balbúrdia. Uma instabilidade governamental absoluta, absurda.

Daí a ideia de se injetar nele elementos do presidencialismo, mantendo o sistema parlamentar combinando com a figura de um presidente da República forte, eleito diretamente pelo povo, e não pelo Parlamento.

O semipresidencialismo trouxe mais estabilidade à França? Total. De 1871 até 1958 o país teve 144 governos. De 1958 para cá, foram cinco presidentes e os primeiros-ministros que esses presidentes quiseram nomear e demitir.

Se funcionou na França, por que não pode ser bom para o Brasil? Por diversos motivos. A começar pela quantidade absurda de partidos que nós temos. Um sistema desses requer um número pequeno, sólido e coeso de legendas, sem dissensões internas relevantes. Uma base leal que dá sustentação ao governo e não permite que ele caia a cada seis meses. Sem isso, não funciona. E como obter maioria sólida no Brasil, um país que tem 33 partidos?

O semipresidencialismo trouxe essa maioria sólida à França. Mas o que dá estabilidade ao sistema não são os mecanismos do regime parlamentar. É justamente o comando de um presidente eleito diretamente pelo povo, com uma confiança e uma identificação enorme com o povo. E uma autoridade muito grande, que não existia antes, quando os governos eram chefiados por parlamentares.

O Brasil não entende e não é vocacionado para o sistema parlamentar. Mas entende muito bem o sistema presidencial.

Por quê? O Brasil está acostumado, por 130 anos de prática do regime presidencial, a ter como referência um presidente da República. Não vai entender, por exemplo, a queda de um governo a cada seis ou sete meses, proporcionada por pessoas [os parlamentares] com as quais a população não tem nenhuma identificação.

Nós vamos destruir algo que, mal ou bem, construímos ao longo de mais de um século.

Mas o presidencialismo, como está, funciona no Brasil? O presidencialismo sob o qual vivemos vem sendo paulatinamente aprimorado. O Brasil nunca tinha passado por um período tão longo de relativa estabilidade institucional como ocorreu depois da Constituição de 1988.

Desde então, nós tivemos governos perfeitamente sólidos, coerentes, que puderam aplicar suas políticas sem maiores traumas. Cito os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Lula, o primeiro governo de Dilma e os dois anos de Michel Temer. Isso tudo é resultante da experiência presidencialista que temos e conhecemos.

Mas houve instabilidade, com dois impeachments no período. Em 33 anos, nós tivemos dois impeachments. Pode parecer excessivo, mas faz parte das regras do jogo. O impeachment é um elemento chave do sistema presidencial.

O que o senhor acha que teria acontecido no Brasil em 2020 se nós vivêssemos no semipresidencialismo? Provavelmente Jair Bolsonaro nomearia o primeiro-ministro, que tentaria aplicar as medidas necessárias para a crise sanitária e teria a oposição do presidente da Republica. O presidente acabaria destituindo o primeiro-ministro e criaria uma crise enorme com o Congresso.

A crise do país é administrável, fácil de resolver com a substituição do atual presidente pelas urnas por qualquer pessoa que seja normal, frequentável, aceitável, democrata, que não traga de volta esse ranço militar que Bolsonaro trouxe

Joaquim Barbosa

Ex-presidente do STF

uma interpretação de que o semipresidencialismo poderia ser a repetição da adoção do parlamentarismo em 1961, que tirou poderes do então presidente João Goulart. Eu não gostaria de especular sobre isso. O que sei é que se trata de uma iniciativa vinda do Congresso. No meu entender, é mais uma tentativa do Parlamento de se assenhorar das atribuições da Presidência da República.
Por diversos fatores, a Presidência se enfraqueceu em anos recentes. E o Congresso vem tentando usurpar, por diversos mecanismos, suas prerrogativas e competências. Não é por outra razão que estamos assistindo a esse assalto bárbaro dos parlamentares a algo que é sagrado, que são as verbas públicas, do orçamento público.

E agora eles querem oficializar isso através de um suposto semipresidencialismo em que dariam as cartas. Mas eles não sabem o que é realmente o semipresidencialismo. O tiro pode sair pela culatra.

Por quê? Porque o presidente eleito pela nação inteira é um personagem com poder extraordinário. No semipresidencialismo, você terá um confronto de duas legitimidades: a da pessoa eleita por 150 milhões de brasileiros e a legitimidade difusa do Congresso Nacional, com a qual boa parte dos brasileiros não se identifica.

Os parlamentares encurralam presidentes da República que são fracos. Mas a pergunta que se faz é essa: para os brasileiros, quem são esses homens? Os brasileiros se veem representados em Arthur Lira, em outros líderes do Congresso Nacional? De forma alguma.

Adotar o semipresidencialismo na intenção de transferir oficialmente a essência do poder a esses homens seria um erro político imperdoável.

É uma aventura. Um salto no escuro.

O senhor diz que, no limite, poderíamos ter duas personalidades políticas fortes como Bolsonaro e Lula liderando o Estado ao mesmo tempo. Como isso poderia ocorrer? É da essência do sistema. Ele pressupõe a presença de duas autoridades máximas na chefia do Estado e do governo. O poder Executivo deixa de ser exercido por uma pessoa, o presidente da República, e passa a ser exercido por ele e também pelo primeiro-ministro.

Como conciliar uma personalidade eleita pelas urnas e a segunda legitimada pelo fato de dominar uma suposta maioria no Congresso? Haverá momentos em que elas vão entrar em conflito.

E, no semipresidencialismo, se a ideia é ser um sistema que reúna elementos do presidencialismo e do parlamentarismo, necessariamente o presidente terá a prerrogativa de dissolver o Congresso, encerrando mandatos da noite para o dia. O Congresso quer isso? Já pensou o Bolsonaro, com todos esse seu extraordinário desconhecimento das instituições, com o poder de dissolver o Congresso?

O que poderá então reverter o enfraquecimento do sistema? A eleição [para presidente] de uma pessoa normal, equilibrada, aceita por uma parcela razoável da população e que conheça realmente as instituições já reestabelece boa parte da estabilidade institucional de que precisamos. Porque Bolsonaro não sabe o que é a instituição da Presidência da República. Ele desconhece aspectos comezinhos, o beabá do exercício da Presidência.

Não vejo a necessidade, porém, de fazermos experimentos exóticos. A crise do país é administrável, fácil de resolver com a substituição do atual presidente pelas urnas por qualquer pessoa que seja normal, frequentável, aceitável, democrata, que não traga de volta esse ranço militar que Bolsonaro trouxe.

Os militares estão ganhando asas. Mas o sistema tem seus mecanismos de acomodação. Um presidente que saiba das coisas manda esses militares para os quartéis de novo

Joaquim Barbosa

Ex-presidente do STF

O senhor teme um golpe ou uma tutela militar? O regime sob o qual vivemos pode evitá-los? O Bolsonaro vem tentando isso. Ele povoou toda a administração pública com militares. Instituiu privilégios enormes para eles e tenta associá-los à sua agenda autocrática, nem um pouco democrática, ditatorial e golpista.
Bolsonaro faz suas bravatas e ameaças, mas ele vem sendo contido sobretudo pelo poder Judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal.

Algumas medidas dele foram também barradas pelo Congresso Nacional. Mas sem dúvida alguma essa saliência desses militares em postos-chave é preocupante. Nós não víamos isso aqui no Brasil há muito tempo. E tem que acabar.

Os militares estão ganhando asas. Mas o sistema tem seus mecanismos de acomodação. Um presidente que saiba das coisas manda esses militares para os quartéis de novo.​

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