Ao que tudo indica, generalizou-se a expressão "pós-verdade" em jornais e redes sociais, mas curiosamente confundida com desinformação. Não era esse o seu significado, ao longo da década passada, em escritos reflexivos.
Tratava-se de designar algo tido como mais importante do que o verdadeiro no contexto da opinião pública, em geral mais suscetível a apelos emocionais do que a fatos objetivos. O fenômeno não era novo à academia nem à arte: há uma tendência a se julgar os fatos a partir da própria percepção.
Em seu celebrado "Rashomon" (1950), o cineasta Akira Kurosawa encena quatro interpretações contraditórias de um fato, mas todas plausíveis. Assiste-se agora a uma espécie de super "efeito Rashomon", isto é, à dificuldade, senão à impossibilidade de saber o que está realmente acontecendo não apenas na esfera global, mas principalmente no entorno imediato.
Entre o filme e a época de hoje se interpõe a invenção de um dispositivo tecnossocial que atravessa duas etapas. Primeiro, a televisão, que, durante dois terços de século, pratica uma pedagogia de rebaixamento da complexidade cultural pela comunicação mercantil. É a lógica do reality show: quanto mais baixa a qualidade, maior a audiência. Em segundo, se impõe a rede eletrônica com a velocidade do mais fácil em termos políticos e morais. As duas etapas podem ser resumidas numa frase do filósofo Bertrand Russell: "Quanto pior a lógica, mais interessantes as consequências dos discursos".
Evidente que um dispositivo desses não se pauta pela racionalidade que preside às regras morais, estéticas, jurídicas etc. Mas a linguagem deixa ver uma estrutura que precede toda e qualquer experiência, ou seja, a do funcionamento das trocas vitais. A verdade não é algo externo a ser alcançado por meios lógicos ou técnicos, mas a sua própria e fundadora energia interna (o sentido), portanto, a condição de possibilidade da interação humana. Não lhe cabe o prefixo "pós". Assim como se fala de uma sociedade pós-industrial, mas não "pós-energética", não existe uma linguagem "pós-verdadeira".
Entretanto, num dispositivo de captação exponencial da atenção para a compra e venda do banal, mercadoria é, no limite, tudo o que facilite o prazer imediato, logo, a rejeição aos processos às vezes penosos de figuração da realidade, como as ciências, as artes, os fatos da vida e a agonia do homem. Nega-se a verdade para ocultar a dificuldade do que existe. É assim que ignorância estratégica ou desinformação se fantasia de pós-verdade: a artística ambiguidade de Rashomon é encoberta pela autocegueira deliberada do "efeito avestruz".
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