Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Sobre palavras-charlatãs

Por mais absurdas que sejam à cognição, elas não são inócuas

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Do jornalista e político Carlos Lacerda, dono de tiradas verbais desconcertantes, está na memória o debate parlamentar em que o interlocutor o provocava, dizendo que "suas palavras entram por um ouvido e logo saem por outro". A resposta, fulminante: "Impossível, o som não se propaga no vácuo".

Mas isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda, personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas, metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".

É hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais, mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem efeitos de comportamento.

Por exemplo, carecem de sentido muitos dos nomes das "igrejas" em expansão. Já nas redes digitais, bolhas protofascistas obtêm melhor desempenho do que as progressistas. Discursivamente, o meme abre portas ao fenômeno. Exemplo abstruso é a palavra "Ratanabá", que designa cidade inventada por um ufólogo bolsonarista, suposta "capital do mundo" localizada na Amazônia e com ouro suficiente para "tornar todos os brasileiros milionários". Transformada em meme, a palavra-charlatã adquire força viral na rede, por mais absurda que seja à cognição. E não é inócua: junto com ela são viralizadas ideias antiambientalistas e anti-indigenistas.

Indígenas fazem manifestação em Brasília contra Bolsonaro e Marcelo Xavier da Silva, presidente da Funai - Ueslei Marcelino/Reuters

À consciência letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública, que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo: "Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol" (Ecl. 1,9-9).

O texto bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a feder".

Não se trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio, trocá-las por ações mobilizadoras.

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