Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Um torso à vista

O corpo exposto deixa ver na barriga o rastro da febre coletiva que o elegeu

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Apesar da difícil decifração, terá havido algum sentido de marketing na exposição pública do torso nu do ex-presidente, agora cabo eleitoral. Comparou-se o gesto ao de Putin, mas este se exibiu em aparente boa forma física e, mesmo assim, com um retoque de sombra que atenua a naturalidade imediata da pele. O autocrata russo pretendia provavelmente evidenciar, com certa discrição, marcas de saúde ou de sua alegada capacidade esportiva.

Supõe-se de bom tom político a prova pública da sanidade física de um governante. O mesmo não acontece com a mental, em princípio levada oficialmente na flauta. Dona Maria 1º, rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, louca varrida, batia os braços como se fossem asas de galinha. Já Delfim Moreira, oitavo presidente do Brasil e o único considerado clinicamente louco, era manso, notório por comportamentos descosidos como vestir-se de fraque com condecorações para solenidades que não existiam.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sem camisa em foto divulgada após o resultado do julgamento que o tornou inelegível no TSE (Tribunal Superior Eleitoral)
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sem camisa em foto divulgada após o resultado do julgamento que o tornou inelegível no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) - João Menna


Na crônica subterrânea, a visibilidade do corpo é capaz de repercutir fortemente sobre o imaginário coletivo em todas as épocas. São prolíficas as narrativas sobre o que se chamou de "humanidade errante", ou seja, as massas despejadas nas estradas europeias em consequência das grandes fomes nos séculos 16 e 17 ou das epidemias devastadoras, como a cólera. A fome matava mesmo, mas também a circulação de micróbios, que sinalizava populações de corpos potencialmente virulentos. As febres respondiam pelo apodrecimento rápido dos organismos.

Um corpo representado como público não é simplesmente orgânico, mas biopolítico. Nas redes, o cabo eleitoral da ultradireita aparece sem retoque, a carne nua e crua. A ausência de camisa sugere ao observador insólita intimidade, o que suscita a obscenidade (do latim "ob", "em frente", e "scena") como categoria semiótica explicativa de uma imagem sem mediação ético-visual.

Não se aplica a ilustrações médicas, e sim àquelas destinadas no limite à circulação íntima. O desvio costuma ser pornográfico.

Alheio a ideais atléticos ou à simetria recomendável a padrões de saúde, o torso exposto deixa ver na barriga o rastro da febre coletiva que o elegeu, assim como da virulência que se seguiu. A imagem, desvio de marketing do espaço privado para o público, parece querer exibir a cicatriz como marca sacrificial do corpo, acenando aos fundamentos imaginários de toda comunidade.

Mas o público que o constituiu, por sua vez constituído pelas redes sociais, é volátil e voraz de objetos apetecíveis. É possível que esteja à espera de outros corpos virulentos, porém, mais empáticos, distantes do que possa parecer um cadáver de olhos abertos.

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