Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Descrição de chapéu forças armadas

Longe vá, temor servil

O silêncio como desculpa para não melindrar casta melindrosa é tentativa inequívoca de lavagem da história do golpe militar

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Nenhuma organização criminosa subsiste hoje sem lavagem de dinheiro. E todo sistema de poder político precisa lavar a sua história das origens criminosas, assim como da eventual trilha corruptiva na estabilização de um Estado. Seja qual for sua natureza. O Vaticano tenta há muito tempo lavar a Igreja do sangue derramado no escravismo, na queima inquisitorial de milhões de mulheres e nos holocaustos de conquista, do mesmo modo que as antigas potências coloniais, fazendo penitências. Ética hipócrita do arrependimento.

Tanques das Forças Armadas no comício do presidente João Goulart, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ)
Tanques das Forças Armadas no comício do presidente João Goulart, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ) - CPDOCJB - 13.mar.64/Folhapress

Na memória dos 60 anos do golpe cívico-militar de 64 pesam sobre a consciência coletiva frases de síntese como a do general ao presidente militar: "As coisas estão melhorando depois que começamos a matar". Impossível de esquecer, uma dívida do Estado à Nação jamais paga. Por isso, o silêncio como desculpa para não melindrar uma casta melindrosa é tentativa inequívoca de lavagem da história. Na galega, sem arrependimento, corroborada pela apatia da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, já a caminho do que antigamente se chamava obra de Santa Engrácia: começa, não termina. Há nesse remancho laivos do "temor servil" que Evaristo da Veiga incrustou na letra do Hino da Independência, musicado por D. Pedro 1º. O temor de agora é o da honesta mediação entre passado e presente.

Isso não é detalhe acadêmico. É ponto crucial para o avanço do pensamento coletivo nacional, nos termos da concepção de que o trabalho do pensador "é o de alinhavar as crenças velhas e as novas de modo que essas crenças possam cooperar em vez de interferir umas nas outras" (Richard Rorty, em "A Filosofia e o Futuro"). Olhar de frente os conflitos entre instituições herdadas e o desenho construtivo da nação define o princípio de responsabilidade para com a alma racional contemporânea.

Enxergar os idos de 64 começa com a precisão terminológica de não trocar revolução por golpe de Estado, o que foi. Depois, reconhecer o arbítrio das cassações, a brutalidade das torturas, as matanças, a inépcia econômica. E o mais ominoso para a consciência cívica: golpismo como sombra espúria da institucionalização da tutela militar sobre a cidadania. É como se a pedagogia do terror fosse a única mensagem do passado ao futuro.

O presidente Luiz Inácio Lula participa de cerimônia de apresentação de oficiais generais recém-promovidos, no Palácio do Planalto
O presidente Luiz Inácio Lula participa de cerimônia de apresentação de oficiais generais recém-promovidos, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 4.abr.2024/Folhapress

Lavar a história equivale ao medo de encarar os crimes e a cumplicidade com a dialética negativa de uma instituição que prospera na inércia histórica, em que nada mudará se não mudarem as convicções petrificadas sobre a essência nacional. Sem a verdade dos fatos não se pode conhecer a posição real das Forças no jogo democrático. Hoje, uma releitura do Hino da Independência colocaria no lugar do domínio luso a anacrônica e armada colonização interna. Longe vá, temor civil.

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