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Jason Tércio

Cinco mitos sobre a ditadura militar

Mal lavadas e escondidas, nossas feridas continuam abertas; e doem

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Jason Tércio

Escritor e ensaísta, é autor de "Segredo de Estado - O Desaparecimento de Rubens Paiva" (Objetiva), "A espada e a Balança - Crime e Política no Banco dos Réus" (Zahar) e mais três livros sobre a ditadura militar

Após 60 anos do golpe militar que lançou o país no período mais traumatizante e polêmico de sua história, muitos aspectos ainda não foram devidamente discutidos e esclarecidos, muitas histórias não contadas. Daí existirem alguns mitos, ou mal-entendidos:

1 - Os militares têm superioridade moral e cívica:

Ao tomarem o poder em 1964, os militares acreditavam que tinham superioridade moral, ética, cívica e organizacional sobre os civis para lidar com as questões de Estado e a administração pública. Desde o século19, sobretudo após o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, a crescente interferência militar em assuntos políticos, sempre com uma visão paternalista e autoritária, culminou no golpe dos golpes, em 1964.

Mas, todas as vezes que os militares brasileiros participaram diretamente da política, causaram instabilidade e fracassaram. O governo do marechal Deodoro, após liderar o golpe da República, teve censura, motins, golpe em 1891, fechamento do Congresso, estado de sítio e, finalmente, a renúncia após dois anos de mandato. Seu sucessor, Floriano, também marechal, governou com autoritarismo, revolta da Marinha, estado de sítio e impopularidade. Outro marechal, Hermes da Fonseca, foi eleito em 1910. Seu governo teve rebelião de marinheiros (Revolta da Chibata), estado de sítio, intervenções militares nos estados (Política de Salvações) e enfrentamentos armados.

Na década seguinte, os levantes tenentistas para derrubar o presidente civil Artur Bernardes, em 1922 no Rio, e em 1924 em São Paulo, foram derrotados. Em 1930, os tenentes estavam entre os vitoriosos na revolução (ou golpe) da Aliança Liberal, mas foram alijados do poder, por incompatibilidade programática. O Estado Novo foi ditadura civil-militar, mas o Exército não encabeçou o golpe de 1937 nem participou do governo.

A partir de 1964, os militares conseguiram ficar 21 anos no poder, mas somente com repressão permanente. A ditadura foi um fracasso ético e moral, com corrupção encoberta pelo veto às CPIs no Legislativo; fracasso social, com o aumento das favelas e dos sem-teto; fracasso na segurança pública, com a criminalidade amadorística se tornando poderosas organizações —a primeira, Comando Vermelho, surgiu no Rio de Janeiro em 1979, durante o último governo militar. E fracasso econômico: em 1964, a inflação "assustadora" era de 92,12%, e o último governo militar, do general Figueiredo, deixou uma hiperinflação de 242,24% (IGP-DI/FGV).

2 – O marechal Castelo Branco era moderado:

O primeiro presidente da ditadura é tratado na historiografia como um militar moderado e até legalista. Na verdade, ele foi o presidente militar que mais violou direitos humanos e constitucionais. Em menos de três anos de governo, cassou 116 mandatos parlamentares, suspendeu 547 direitos políticos por dez anos, aposentou compulsoriamente 526 pessoas e demitiu 1.574 funcionários públicos e de autarquias. A maioria dos punidos não era de esquerda —muitos eram até conservadores. Castelo Branco, com o Ato Institucional nº 2, também extinguiu a eleição direta para presidente da República, dissolveu os partidos e transferiu para a Justiça Militar o julgamento de crimes políticos. Quatro meses depois, em 1966, ele decretou o AI-3 que extinguiu as eleições diretas também para governadores e prefeitos das capitais. E no mesmo ano decretou o fechamento do Congresso por um mês. Imaginem o que ele faria se não fosse moderado...

3 - O pior começou depois do AI-5:

Ex-militantes e ex-opositores da ditadura sempre dizem isso em documentários e entrevistas. Um deles, o escritor Carlos Heitor Cony, afirmou em abril de 2014 ao Portal Imprensa: "Até dezembro de 1968, quem queria escrever contra, poderia fazê-lo. O problema é que, após o AI-5, fecharam-se todas as portas".

Mas ele mesmo foi preso cinco vezes antes do AI-5 (e apenas uma depois) por escrever contra a ditadura. Vários outros escritores, jornalistas, intelectuais e até livreiros foram presos e processados por delito de opinião antes do AI-5. Também já havia tortura e censura à imprensa e às artes, já havia presos que ficavam incomunicáveis e o habeas corpus não era concedido para lideranças detidas.

O AI-5 legitimou o que já vinha sendo praticado desde Castello Branco. Quando foi decretado, toda a oposição civil e militar já tinha sido neutralizada nos anos anteriores, com prisões em massa, censura, centenas de inquéritos policiais militares e milhares de réus. Restavam apenas os minoritários grupos radicalizados de extrema-esquerda. Por isso, as sucessivas mortes de presos sob tortura ou execuções em falsos confrontos armados e desaparecimentos de corpos fizeram com que a posteridade caracterizasse o pós-AI-5 como a pior fase.

4 - O AI-5 foi um golpe dentro do golpe:

Na historiografia da ditadura militar, a expressão "golpe dentro do golpe" se refere apenas ao AI-5, como se até então o regime tivesse uma trajetória linear e inalterada. O que houve desde 1964 foi uma sequência de golpes dentro do golpe, como o AI-2, que cancelou definitivamente as eleições presidenciais, imprescindíveis para a normalização democrática. O já mencionado AI-3 foi o terceiro golpe dentro do golpe. Todos esses instrumentos significaram uma amputação de liberdades e de direitos.

Evito de propósito a equivocada expressão "ditadura civil-militar", que minimiza a responsabilidade das Forças Armadas pelo golpe e pelos 21 anos de militarização do Estado brasileiro. Afinal, nenhuma ditadura no mundo jamais foi implantada e sustentada só por militares ou só por civis. Sempre foi uma parceria, mutuamente benéfica.

5 - A ditadura acabou no fim do AI-5:

O historiador Daniel Aarão Reis criou a tese de que a ditadura militar acabou em 1979, com o fim do bipartidarismo e, no ano anterior, do AI-5. A partir daí, na opinião dele, os tribunais agiam com autonomia, a imprensa não era mais censurada, os sindicatos tinham liberdade, havia protestos e surgiu o movimento das Diretas Já.

Mas o fim do AI-5 e do bipartidarismo não mudou a natureza do regime. O presidente seguinte foi um general (João Figueiredo), continuou em vigor a Lei Falcão, que restringia propaganda eleitoral na TV e no rádio (só foi revogada em 1985), os sindicatos não tinham liberdade, tanto que Lula e outros líderes sindicais foram presos em abril de 1980, julgados em auditoria militar por liderarem uma greve considerada ilegal, e o sindicato dos metalúrgicos sofreu intervenção. Os advogados Dalmo Dallari e José Carlos Dias foram presos nesse período pós-AI-5, assim como o deputado federal Freitas Diniz, em 1981, acusado de ofender a honra do presidente da República. Mesmo a nova Lei de Segurança Nacional, sancionada em 1983, manteve a prerrogativa da Justiça Militar de processar e julgar os civis acusados de crimes políticos.

E a campanha das Diretas Já foi violentamente reprimida na decisiva reta final. Dias antes da votação da emenda constitucional que restabeleceria as eleições presidenciais diretas, em abril de 1984, tropas do Exército ocuparam o Eixo Monumental, cercaram o Congresso e a Universidade de Brasília, a cidade ficou sob estado de emergência e todo o noticiário transmitido de Brasília para TVs e rádios foi submetido a censura prévia. A sessão do Congresso que votou a emenda não pôde ser transmitida, e houve prisões de estudantes, jornalistas e políticos (deputado estadual Ivan Ornelas e vereador Ivan Ivo, ambos do PMDB goiano).

Portanto, se fosse verdade que a ditadura só começou "para valer" a partir do AI-5, em dezembro de 1968, e acabou em 1979, teríamos que reduzir o período para apenas 10 anos, em vez de 21. Para evitar falácias e confusões amnésicas como essa, é preciso lembrar sempre o que foi (e o que não foi) a ditadura. A ex-presidente do Chile Michelle Bachelet disse que "só as feridas bem lavadas cicatrizam". As nossas sempre foram mal lavadas e escondidas, por isso continuam abertas. E doem.

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