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José Carlos Sebe Bom Meihy

A anistia do esquecimento

Não relembrar o golpe de 1964 é conveniente à política do "deixa disso" ou "no Brasil é diferente"

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José Carlos Sebe Bom Meihy

Professor titular aposentado do Departamento de História da USP, é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Ainda que haja protestos ecoando em vários cantos, o veto presidencial sobre o cancelamento da memória dos 60 anos do golpe cívico-militar de 1964 causa surpresa, indignação e dúvidas. Isso fica evidente quando se sabe que também as fileiras militares optaram pela discrição frente as comemorações do dia 31 de março (ou 1º de abril?).

Tudo sem os alardes usuais, em particular os festejados no governo passado. A junção das duas posturas convida à retomada de lições deixadas por João Alexandre Barbosa no livro "A tradição do Impasse". Nessa obra, o teórico da literatura demonstra que sempre que o Brasil se vê premido entre pressões, opta pelo vacilo e escolhe a tradição. Mas que tradição, pergunta-se.

Em reunião com o ministro da Defesa, José Mucio Monteiro, ocorrida dia 26 de fevereiro último, contando com a presença do alto comando do Exército —Tomás Paiva, Marcelo Damasceno, da Aeronáutica, e Marcos Olsen, da Marinha— o presidente Lula propôs medidas "apaziguadoras", justificadas na busca de melhor convívio entre instituições complicadas pela reconhecida polarização política nacional.

Alegando que "medidas contra o ódio" se fazem necessárias para encurtar distâncias entre extremos, o mandatário se justificou a fim de impedir retaliações capazes de ainda mais "conflagrar o ambiente". Tal medida compõe uma estratégia de conciliação também dimensionada para atitudes de aproximação com outros grupos opositores, como segmentos religiosos e a oposição conservadora.

A par de táticas explicadas na atual gestão, como se fosse vão "remoer o passado", questiona-se a necessidade de acertos com o dramático processo de perseguições, exílios e mortes, atitudes perpetradas durante a ditadura. Vamos mais uma vez deixar para o futuro o sempre transferido debate sobre aplicação da "justiça de transição", definida pela ONU? Mais uma vez vamos jogar para o devir a responsabilidade de julgamentos que podem perder a potência e se neutralizar progressivamente? Outra vez vamos alimentar a "a anistia de esquecimento", tão conveniente à política do "deixa disso" ou do "no Brasil é diferente"?

Não se trata de vingança ou de simples aumento do teor de repulsa aos militares agora com parcela implicada nos eventos de 8 de janeiro. Mais que tudo, fala-se de desagravo, de reconhecimento da perversidade institucionalizada por um governo autoritário, antidemocrático e que mantém suas vítimas sem o esperado reposicionamento. Aliás, nessa postura redentora cabe o conceito de "reparação".

Mas retomemos as raízes. Na onda conveniente às políticas da Guerra Fria (1947-1991), no cone sul da América Latina, em decorrência do medo de "Cubas continentais" e em prevenção à "cubanização das esquerdas", desde a Revolução Cubana de 1959, países como Paraguai, Uruguai, Chile, Bolívia, Argentina e Brasil foram tragados por autoritarismos exercidos por militares e simpatizantes das lides anticomunistas, em particular lideradas pelos Estados Unidos.

Na maioria dos casos, o processo de transição para a democracia se deu por julgamentos intransigentes com condenações exemplares. A desmilitarização dos governos, contudo, ocorreu de maneiras diferentes, dependendo de fatores históricos locais. No caso brasileiro, não há como deixar de lado o suposto que nossa República, proclamada por militares, tenha implicado uma memória de zelo e controle exercidos por programas de vigilância constante, como se a sociedade civil não desenvolvesse musculatura para assumir direções republicanas continuadas.

Convém ainda contrastar nosso caso com o da Argentina, a mais radical experiência de desmilitarização latino-americana. Lá, em 1983, sob o governo civil de Raúl Alfonsín, criou-se a "Comisión Nacional sobre Desparición de Personas" com o fito de julgamento de crimes ocorridos entre 1976 e 1983. Entre os penalizados, figuras de proa como o general Videla foram condenadas com mais de outras mil pessoas. Exemplar também o caso da prisão em Londres, em 1989, do ditador chileno Augusto Pinochet, elevando ao nível internacional as ações abrigadas nas linhas da "justiça de transição".

Se comemorar implica celebração conjunta, pergunta-se no caso dos 60 anos do golpe quem comemora o quê —e com quem. Desdobramento imediato disso, a conclusão de que sem revisão de valores não há mesmo o que festejar; mas até quando? E, pensando no presidente Lula, evoca-se a sentença proposta por Hannah Arendt: "O⁠ revolucionário mais radical se torna um conservador no dia seguinte à revolução".

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